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“Nossa vocação é inventar tecnologias e sair vendendo” Carlos Paz de Araújo, fundaAdor dA Symetrix

 

Você está reprovado porque pessoas da sua etnia têm dificuldade em física quântica, uma área alemã demais para você.” A frase de claro conteúdo discriminatório, dita por um professor da Universidade Notre Dame, em Indiana (EUA), teve o efeito de uma fagulha na cabeça do potiguar Carlos Paz de Araújo. A partir daquele momento, o então estudante universitário mergulhou de cabeça na engenharia dos componentes eletrônicos, justamente a matéria que menos o agradava no extenso currículo de engenharia elétrica.

Hoje, cerca de 35 anos depois, o cientista brasileiro naturalizado americano coleciona um portfólio de quase 600 patentes registradas em seu nome. A maior parte delas está associada à nanotecnologia, sobretudo a um tal de chip de memória ferroelétrica, cujo custo é inferior aos modelos tradicionais e a capacidade, maior. Essa cesta de invenções já lhe rendeu mais de US$ 150 milhões em licenças e royalties pelo mundo afora.

 

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Mercado dominado no Japão: a Panasonic investiu US$ 1 bilhão nos últimos três anos para construir em Osaka uma fábrica de memória FeRAM

 

No ano de 2006, Araújo foi o primeiro brasileiro a ganhar o prêmio máximo de inovação tecnológica, concedido pelo Institute of Electrical and Electronic Engineers, mais conhecido como prêmio Daniel Noble Award – uma premiação considerada similar ao Prêmio Nobel. A Panasonic, a gigante japonesa dos eletrônicos, adquiriu 9% do capital de sua empresa, a Symetrix.

No Brasil, porém, é quase um desconhecido. Seu nome só começou a circular nos jornais brasileiros quando anunciou a construção da primeira fábrica de chips do País e a segunda na América Latina, sem investimento público. Um projeto que demandará inicialmente cerca de R$ 200 milhões, mas que pode chegar a R$ 1 bilhão em sua fase final.

Aos 56 anos, nascido em Natal, com 1,81 metro de altura e 135 quilos, Araújo apresenta um tipo físico imponente. A barba hirsuta e um constante cenho franzido escondem o bom humor e o carisma que se revelam logo nos primeiros minutos de conversa. Superlativo nas palavras (e nas metas de negócios), não poupa elogios a si mesmo e não disfarça a vaidade quando se torna o tema central de uma conversa. “No campo científico, sou chamado de Bill Gates dos chips de memória”, conta ele em entrevista à DINHEIRO.

“Minha tecnologia vai dominar o mercado de PCs como um todo.” Diante de frases como essa, uma pergunta não quer calar: É Araújo um gênio ou um sonhador? A tecnologia que “vai dominar o mercado” era, até agora, um segredo guardado a sete chaves, que Araújo revela com exclusividade à DINHEIRO. Trata-se de uma memória não volátil – não necessita fonte de energia – que poderá substituir o disco rígido e a placa-mãe de qualquer PC, sem prejudicar sua performance. Batizada de Cerran, essa tecnologia ainda não chegou ao mercado, mas sua licença entrou numa espécie de leilão, do qual participam colossos da tecnologia como Panasonic e IBM.

“Os estudos para desenvolvimento dessa tecnologia começaram na Samsung e na Fujitsu há cinco anos. Eu comecei atrasado, mas obtive sucesso do meu jeito. Eles continuam tentando”, conta ele. Araújo começou a pavimentar esse caminho aos 17 anos, quando desembarcou nos EUA para um intercâmbio. Nunca mais voltou. Graduou-se em engenharia elétrica na Universidade Notre Dame. Lá, descobriu a discriminação em relação aos latinos ao ouvir a frase do professor de física quântica. Mas seu bom desempenho escolar lhe garantiu uma bolsa da Força Aérea Americana para fazer mestrado e doutorado. Frequentou bacharelado e mestrado simultaneamente.

 

US$ 600 milhões foi o faturamento da tecnologia ferroelétrica no último ano. O mercado total de memórias não voláteis teve uma receita de US$ 70 bilhões

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Discórdias no vale do Silício: a fábrica da Intel tem capacidade para produzir o chip Cerran, mas Araújo diz que não tem uma boa relação com a empresa

 

A primeira invenção de Araújo veio a público nessa época. Por encomenda da Otan, o cientista desenvolveu um material super-resistente para proteger aviões e submarinos de raios. Alguns anos depois, criou uma empresa com o americano Larry McMillan, a Symetrix, para desenvolver projetos para o governo americano. “A vocação da Symetrix é inventar tecnologias e sair vendendo”, afirma Araújo.

Para o cientista, sua história teria sido bem diferente se tivesse voltado para o Brasil depois do doutorado. “O Brasil não tem tradição em patentes em tecnologia, por conta das importações”. De acordo com o advogado Fernando Stacchini, especialista em tecnologia e em propriedade intelectual, o principal problema é a morosidade. “O registro de patentes pode demorar dez anos por uma questão de falta de preparo e infraestrutura e isso desestimula qualquer inventor”, afirma Stacchini. Em contrapartida, o custo do processo é muito maior nos EUA.

Segundo Araújo, o preço do registro começa em US$ 2,5 mil, mas pode chegar a US$ 250 mil para uma cobertura mundial. Mas isso não tem sido um empecilho para o cientista brasileiro. Existe uma nova gama de suas invenções prontas para ganhar o mercado. É o caso de um novo sistema de ar-condicionado para carros que não consome gasolina. A Symetrix também está desenvolvendo um tipo de biodiesel proveniente de uma planta do deserto. Apesar da coleção de inventos, Araújo não adquiriu os trejeitos e os jargões típicos dos gênios da informática.

Para se fazer entender, não economiza nos desenhos. Professor de engenharia elétrica da Universidade do Colorado (EUA) e professor consultor na Universidade Fudan de Xangai, na China, e na Universidade Tecnológica de Kochi, no Japão, deu quase uma aula de física à reportagem da DINHEIRO para explicar a tecnologia que está trazendo ao Brasil. Enquanto a Cerran continua no forno, seu principal invento em nanotecnologia tem conquistado o mundo nos últimos dez anos.

A memória ferroelétrica FeRAM tem capacidade de armazenamento de 64 mbps, pode ser lida cerca de 100 trilhões de vezes e usa dez vezes menos eletricidade que a Flash, a memória não volátil mais utilizada no mundo. Foi a FeRAM, por exemplo, que possibilitou a fabricação de celulares menores que o antigo modelo tijolão. A memória também permitiu que as máquinas fotográficas digitais ficassem mais ágeis e finas. Todos os leitores de DVDs usam o chip. Além disso, seu custo é quase a metade das memórias não voláteis disponíveis no mercado.

Um notebook MacBook Air, da Apple, na versão Flash, custa US$ 1 mil a mais do que modelos que carregam o chip de Araújo. Com a FeRAM, poderia sair por até menos da metade e com um consumo de bateria até dez vezes menor. Por tudo isso, o Nikkey Shinbum (o The Wall Street Journal do Japão) publicou uma matéria afirmando que Araújo mudou a era do telefone celular. Por duas vezes, o inventor brasileiro foi tema de reportagens da Forbes, uma das mais importantes revistas de negócios dos EUA.

O FeRAM tem sido também o principal substituto da tecnologia dos cartões magnéticos. As vantagens são inúmeras (veja box na pág. 63). Pelo seu tamanho – tem 180 nanômetros, enquanto um fio de cabelo humano tem 500 mil nanômetros – e capacidade de armazenamento, a memória ferroelétrica pode concentrar em um só cartão todos os documentos e formas de pagamento.

Não é necessário contato para que a memória seja lida. Para debitar uma compra, por exemplo, nem é preciso tirar o cartão do bolso. O mercado de memórias não voláteis gira em torno de US$ 70 bilhões a US$ 100 bilhões.

A FeRAM detém apenas US$ 600 milhões desse total. Araújo garante que o empecilho está na pouca capacidade de produção da tecnologia. O chip é fabricado pela Panasonic no Japão há mais de três anos. O cientista negocia agora parcerias com outras empresas na China. Cerca de um bilhão dessas memórias já foram comercializadas no mundo.

 

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Ewerton de Oliveira, sócio da Nexcard:

investimento de R$ 50 milhões em fábrica de leitores de chips ferroelétricos em Natal

 

O Japão usa a tecnologia em seu sistema de transporte público. Algumas das principais fabricantes de computadores, entre elas Sony e Acer, já lançaram modelos com leitores de cartões com FeRAM. A China vai implantar a tecnologia em quase um bilhão de carteiras de identidade.

Mas se é tão boa, por que essa memória não é usada no Brasil e nos EUA? “Porque há interesses econômicos em não permitir que a nova tecnologia destrua um sistema até então tão rentável”, afirma o professor Elson Longo, pesquisador da Universidade Federal Paulista (Unesp).

Em 2006, o governo brasileiro investiu mais de R$ 200 milhões na implantação de uma fábrica de chips magnéticos, uma tecnologia francesa, em Porto Alegre. “Um chip considerado ultrapassado”, afirma Longo. “Não me conformo que o governo tenha implantado uma fabrica de chips com tecnologia estrangeira, sendo que no mundo inteiro já se usa uma nova memória de origem brasileira”, diz Araújo (leia abaixo sua entrevista). Mas essa história está prestes a mudar.

 

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Um grupo de empresários brasileiros fundou a Nexcard Solutions, uma empresa que vai fabricar no Brasil e exportar leitores e cartões com a tecnologia FeRAM. Por exigência do cientista, a unidade será instalada até o mês de agosto na cidade de Natal, onde nasceu, e receberá um investimento privado de R$ 50 milhões. “É uma questão de retribuição ao Estado dele”, conta Ewerton de Oliveira, sócio da Nexcard.

Num segundo momento, Araújo quer trazer ao Brasil uma fábrica de chips de memória ferroelétrica. Sua empresa, a Symetrix Corporation, está negociando o projeto com duas companhias brasileiras, a própria Nexcard Solutions e o Grupo Encalso-Damha. Estima-se que o projeto gere pelo menos 700 empregos diretos. Cerca de sete novas fábricas devem ser construídas em paralelo para atender à demanda da fabricação de chips de memória.

O Brasil detém entre 1% e 2% do mercado mundial desse tipo de componente. A fábrica deve ser construída até 2012, no parque tecnológico de São Carlos, interior de São Paulo. “A data exata só será definida em setembro, quando tivermos a dimensão exata de até onde a Cerran pode chegar”, explica Araújo. “Para o Brasil talvez seja melhor começar direto pela nova memória porque é mais rápida e mais barata.” A Cerran tem 65 nanômetros e sua capacidade de armazenamento começa a partir de 64 mbps.

De acordo com o cientista, é seis vezes mais rápida que a DRAM, que domina o mundo dos computadores. “O mercado vai ficar doido quando a Cerran começar a ser fabricada”, afirma o especialista em TI, Orácio Kuradomi. De acordo com o analista, a nova tecnologia pode substituir as funções de um disco rígido – um mercado de US$ 200 bilhões. “O nosso jogo é dominar completamente o mercado de PCs, em que a memória Flash não pode ir”, revela Araújo. Com a entrada da Cerran, toda a arquitetura dos computadores irá mudar.

Tanto a CPU como o disco rígido poderão ser resumidos a um só chip. Com invenções como essa, Araújo passou a comandar o laboratório de engenharia elétrica da Universidade de Notre Dame. Adivinhem quem era o titular. O mesmo professor que garantiu que ele, Araújo, não levava jeito para a coisa. “Hoje, ele não é nada”, diz Araújo.

A nova geração de cartões

Desenvolvida pelo cientista Carlos Paz de Araújo, a memória ferroelétrica já substituiu os chips magnéticos no Japão e na China. Conheça as diferenças.

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O cientista brasileiro Carlos Paz de Araújo fala sobre a resistência do Brasil e dos EUA em reconhecer sua tecnologia

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“Sou considerado o Bill Gates das memórias”

 

Dinheiro – Com quase 600 patentes em tecnologia, como explicar o fato de o sr. não ser uma figura popular no Vale do Silício?
Araújo
– Tudo no Vale do Silício gira em torno de dinheiro. A fórmula que as venture capitals usam resultam quase sempre numa desvantagem ao proprietário da ideia. Os investidores injetam de US$ 2 milhões a US$ 5 milhões na empresa. Quando o dinheiro acaba, é aberto um financiamento para salvar o negócio. Seu valor despenca e acaba favorecendo a venture capital na aquisição de ações. Nesse processo, os inventores ficam com a minoria. Quem não tem dinheiro é obrigado a aceitar. Eu e meu sócio rejeitamos esse modelo duas vezes porque tínhamos dinheiro. Demos as costas ao Vale do Silício e hoje somos boicotados por conta disso.

Dinheiro – Esse rompimento é definitivo?
Araújo
– Com a nova memória, a Cerram, queremos fazer diferente. A ideia é levantar um aporte de US$ 80 milhões para o desenvolvimento da tecnologia.

Dinheiro – Como é sua relação com grandes ícones da tecnologia, como Steve Jobs e Bill Gates?
Araújo
Esse pessoal é considerado pelos cientistas como vendedores. Jobs não é formado em engenharia elétrica e Gates nem sequer terminou a faculdade. O meio científico mantém uma distância grande desse grupo. Nesse campo sou bem conhecido. Os meus parceiros brincam que sou o Bill Gates da memória ferroelétrica.

Dinheiro – Qual a diferença da área científica para os “vendedores”?
Araújo
Para levantar dinheiro, as empresas costumam anunciar tecnologias revolucionárias para chamar a atenção. O preço das ações dispara, mas as ideias caem no esquecimento e não saem do papel. A HP e a IBM usam essa fórmula.

Dinheiro – O sr. pensa em passar para o outro lado, o da fama?
Araújo
A Cerram vai ocupar um mercado muito maior do que o da Microsoft e da Apple. Vai dominar o universo dos PCs como um todo. Aí a coisa vai mudar.

Dinheiro – Sua trajetória também é pouco conhecida no Brasil.
Araújo
Para o governo, eu apareci recentemente, de surpresa. Existe uma ignorância da minha existência no País, assim como da memória ferroelétrica que desenvolvi. Os que me conhecem, não têm poder de decisão. Isso explica o fato de terem optado por investir R$ 5 bilhões em uma tecnologia francesa obsoleta: a memória magnética.

Dinheiro – O sr. vai dar as costas ao Brasil como fez com o Vale do Silício?
Araújo
Não faz sentido eu ir atrás do governo ou esperar que ele venha atrás de mim. Se a China vai ter mais de um bilhão de carteiras de identidade com a FeRAM e o Japão já tem mais de um bilhão de chips no mercado, é um passo óbvio trazer a memória ferroelétrica ao Brasil. Farei isso sem a ajuda do governo.

Dinheiro – Como explicar a falta de informação do País sobre a FeRAM?
Araújo
Não existe uma cultura no Brasil de enxergar semicondutores como um negócio. Esse campo é para os brasileiros apenas uma experiência científica.