O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) impede há um ano o acesso público a documentos de transparência sobre obras públicas, repasses de dinheiro a Estados, municípios e organizações não governamentais (ONGs) e emendas parlamentares, ocultando a divulgação de informações exigidas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), responsável pela plataforma Transferegov, usada na gestão e na transparência dos recursos federais, afirma que muitos documentos contêm informações sensíveis, como dados pessoais de servidores públicos, e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) impede a divulgação dessas informações.

Ao adotar a prática, o governo acabou impedindo o acesso à íntegra de 16 milhões de documentos que explicam o uso do dinheiro público no País inteiro, segundo informação do MGI, em vez de dar transparência às informações e ocultar apenas os dados sensíveis, como manda a prática adotada desde a implantação da Lei de Acesso à Informação, em 2011.

O governo argumenta que fica entre o dever da transparência e a proteção dos dados e até o momento foi impossível fazer um tratamento de todos os arquivos. O ministério prometeu dar uma solução tecnológica para os documentos de obras apresentados daqui para frente “em menos de 60 dias”, mas não se comprometeu com nenhum prazo sobre os 16 milhões de documentos de transferências já anexados.

A medida tem impacto sobre a transparência das emendas parlamentares. O TCU e o STF obrigaram a União a dar publicidade aos repasses e as prefeituras que recebem esses recursos a apresentarem planos de trabalho, falando o que farão com o dinheiro recebido, e relatórios prestando contas após o recurso ser gasto.

No caso das emendas Pix, por exemplo, nem todas as prefeituras cumpriram a decisão. As que cumpriram apresentaram documentos como licitações, contratos, comprovantes de pagamento e relatórios de obras na plataforma, mas os arquivos estão inacessíveis para o público. É possível saber que parlamentar indicou a emenda e para onde foi o dinheiro, mas não em que a verba foi gasta.

No ano passado, o governo Lula mandou R$ 11,7 milhões de uma emenda Pix indicada pelo deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP) para município de Cotia (SP). A prefeitura diz ter gastado R$ 9 milhões do recurso com infraestrutura urbana e apresentou documentos para comprovar o uso do dinheiro, como edital das obras, contratos com os fornecedores e comprovantes de pagamentos. Mas nenhum desses arquivos está disponível.

Em 2022, o governo Bolsonaro (PL) repassou R$ 31,8 milhões do orçamento secreto para construção de unidades habitacionais em Santana (AP), território eleitoral do senador Davi Alcolumbre (União-AP). A obra foi suspensa. Na plataforma, não é possível acessar a íntegra do projeto da obra, os contratos assinados e os documentos que justificam por que o trabalho foi paralisado e não resultou em entregas efetivas para a sociedade.

Ministério da Gestão prometeu solução para documentos de transparência

No dia 21 de maio de 2024, o Ministério da Gestão afirmou ao Estadão que iria implementar a Declaração de Observância à LGPD como etapa obrigatória no ambiente em que os documentos são catalogados para resolver o problema, “de modo que os entes (Estados e municípios) promovam as devidas anonimizações de dados pessoais protegidos pela Lei nos documentos anexados ao Transferegov.br”.

Na ocasião, a pasta disse que “a disponibilização de informações e documentos no ambiente de acesso livre do Transferegov.br não é proibida” e que a restrição era “temporária”. Até o momento, porém, o governo não implementou a solução.

Especialistas dizem que a lei de proteção de dados não é maior do que o dever de transparência. Nesse caso, o governo precisa cumprir as duas regras e dar acesso aos documentos, ocultando apenas as informações sensíveis, e não a íntegra dos arquivos.

“É essencial que, no contexto de transparência ativa das emendas parlamentares, a disponibilização seja regra, com a supressão ou tarjamento de documentos apenas mediante análise e decisão individualizada, e não massiva e indiscriminada, e que a indisponibilização seja restrita a informações acessórias dos convênios, sendo vedada a supressão integral no TransfereGov de planos de trabalho, prestação de contas, relatórios de gestão e documentos congêneres”, diz um parecer enviado pelas organizações Associação Contas Abertas, Transparência Brasil e Transparência Internacional no Brasil ao ministro Flávio Dino, relator do processo sobre emendas no STF, em setembro do ano passado.

Um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), de março de 2024, fixou o entendimento de que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais se aplica aos contratos da União, mas concluiu que o governo deveria suprimir os documentos e informações pessoais, e não restringir o acesso à íntegra dos arquivos.

Na sexta-feira, 16, após uma reportagem do jornal O Globo sobre o tema, o Ministério da Gestão realizou uma oficina para jornalistas sobre a plataforma de transparência. Os técnicos da pasta argumentaram que todas as informações necessárias estão disponíveis para o público, como valores gastos, municípios que receberam, empresas que realizaram as obras e andamento dos projetos, e são suficientes para dar transparência aos recursos, apesar de os documentos anexados a essas propostas estarem inacessíveis.

“Não houve nenhum recuo por parte dos ministérios nos instrumentos de transparência, todas as informações estavam, estão e continuarão presentes nos painéis do Transferegov”, disse o secretário executivo adjunto do ministério, Adauto Modesto Junior.

O governo prometeu lançar, “em menos de 60 dias”, uma solução para que os documentos apresentados na plataforma daqui para a frente sejam acessíveis e tarjados ocultando apenas os dados sensíveis e protegidos por lei, mas a medida alcançará apenas os arquivos anexados daqui para frente. Documentos já elaborados, incluindo emendas do orçamento secreto, repasse para ONGs e transferências de emendas Pix, continuarão ocultos e o Executivo prometeu dar uma solução, mas sem prazo definido.

“Nós temos o dever de transparência, nós temos o dever de proteção de dados pessoais e hoje eu não consigo identificar e gerir”, disse a secretária adjunta de Gestão e Inovação do ministério, Regina Lemos de Andrade. “Não somos contra a transparência, entendemos que tem de proteger os dados, mas trabalhávamos há anos com uma transparência sem nenhuma restrição e, para nos adequarmos, precisamos de um prazo. Não é negativa de informação, não é querer fechar.”