Dentre as primeiras medidas tomadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a edição de uma medida provisória (MP) atendeu a duas reivindicações dos povos indígenas: revogou uma lei que permitia garimpo em terra indígenas em circunstâncias específicas, norma editada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por decreto; e alterou o nome da Funai para Fundação Nacional dos Povos Indígenas, deixando para trás o nome original, “Fundação Nacional do Índio”.

A alteração no nome foi uma concessão do novo governo aos povos indígenas, que se reuniram com o grupo de transição para fazer demandas. Com a medida, o governo Lula sinaliza que os indígenas devem ter maior representatividade, em uma mudança de rumo em relação à gestão anterior.

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Dentre as entidades que comemoraram a alteração está a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que afirma que se reuniu com o grupo de transição do governo para analisar a atual situação da política indigenista do Estado brasileiro.

Embora a mudança no nome da Funai possa não parecer tão importante, ela tem um grande simbolismo para os indígenas. De acordo com a mestre em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP), Tatiane Klein, a terminologia “índio” sempre foi equivocada, já que foi dado pelos colonizadores à população local imaginando que haviam chegado às Índias, local de importante comércio marítimo que tinham como destino original, quando na verdade haviam chegado à América. “O termo índio vem sendo criticado há muito tempo por ser fruto desse equívoco dos colonizadores. Então ele ainda remete a um preconceito, a um olhar colonizador”, afirma Klein.

Segundo ela, uma indicação disso é que mesmo textos legais e oficiais ainda usam o termo, o que seria uma demonstração de como o Estado está alheio às demandas e questões indígenas. “Na Constituição Federal, o capítulo que trata dos direitos das populações indígenas se chama ‘Dos Índios’, temos o Estatuto do Índio e a Funai também o levava em seu nome, ‘Fundação Nacional do Índio’. Então o uso do termo, ainda que equivocado, perdurou nesses documentos e na relação do Estado brasileiro com essas populações, mas o que a gente vê agora, com uma primeira presidenta da Funai, uma primeira ministra dos povos indígenas é uma possibilidade do Estado brasileiro rever e consertar essa posição e o uso equivocado de um termo que não é reconhecido pelas populações indígenas há muito tempo”, conclui Klein.

Para a antropóloga, indígena não é apenas um termo politicamente correto, mas linguisticamente preciso. “Indígena tem uma origem do latim e significa a população que é autóctone de uma região, território ou país. Os sinônimos são aborígene, autóctone, nativo, ou seja, são todos termos que se referem a essa condição de ser nativo de um local, o que é diferente de índio, que embora se pareça com indígena, tem uma etimologia totalmente diferente”, afirma Klein.

Isso é corroborado pela cacique Juliana Kerexu, coordenadora da Comissão Guarani Yvyrupa da Terra Indígena Ilha da Cotinga, em Paranaguá (PR), e professora de língua e filosofia Mbya Guarani. “A mudança é uma reparação histórica. Não tem índio neste país, mas povos indígenas, e a mudança é um reconhecimento disso”, afirma ela. “Minha mãe e minha avó foram trabalhar nas colônias e ‘índio’ era um termo pejorativo. O ‘índio’ era sujo, bicho, não podia usar roupa porque nem era considerado humano. O ex-presidente é um retrato das pessoas ignorantes que não conseguem perceber que são fruto dessa história de violência. Dizem que a avó foi pega ‘a laço’, ou ‘a cachorro’ e algumas pessoas têm orgulho disso. O Brasil não foi descoberto, foi invadido e saqueado; esse Brasil que só existe por causa dos estupros, dos massacres e da escravização. Não é uma história bonita, mas tem que ser contada. Eu não gosto da palavra índio. Como professora e indígena, eu corrijo mesmo, porque me remete às histórias de minha avó e minha mãe. É uma palavra de reflete uma ignorância que diz que os indígenas estão no passado. E devem viver como no passado”.

Ela vê com esperança as mudanças da Funai, e considera que a entidade precisa ter uma liderança de origem indígena, como finalmente passa a ser o caso com a indicação de Joênia Wapichana para o cargo em 2023. “Esse espaço deve ser ocupado por gente nossa. A Funai foi criada porque acreditavam que nós não poderíamos ser o que somos, era para ser ‘a voz dos indígenas’. Essa alienação sobre a nossa capacidade de nos mantermos, com as sabedorias que carregamos, impede que ocupemos os espaços políticos e institucionais. Ter uma mulher indígena que vem de uma área muito conflituosa é importante. Traz esperança ter indígenas nessas instituições ligadas à questão da demarcação. Quem conhece a luta, que vai à Brasília dizer ‘ei, nós estamos aqui, até o último suspiro, até o último guerreiro’ são os povos indígenas. Nós estamos cansados de mal conseguir respirar nesse grande mar de alienação, de um povo que acha que é europeu, mas não é, mas olha para o outro lado do oceano achando que os invasores somos nós. Nos últimos quatro anos, tivemos um presidente que exaltava esse racismo e alienação. Acho que agora dá para subir para respirar um pouco”, afirma ela.

O fato de ser uma mulher indígena, para Kerexu, também é um bom sinal. “Ela [Joênia Wapichana] sempre foi uma referência de luta. Ela foi eleita deputada federal e por estar em Brasília, no meio de todos aqueles homens, e ser mulher e única indígena é uma referência de luta. Cada povo tem seu jeito, mas nós sabemos que ser uma mulher é muito mais difícil. Nós temos que lutar 3, 4 vezes mais para mostrar que somos capazes. É muito fortalecedor ver as mulheres ocupando esses espaços. Não só ela, mas a Sonia como ministra, a Celia e outras, além das que virão. Elas são um pouquinho de nós”, afirma. “Um pouco do meu papel como liderança, mulher, indígena e professora é contribuir nessa luta contra as violências e essa alienação que ainda é estridente, especialmente no sul do Brasil, que tem essa forma de ver como se estivessem na Europa, só que não estão. E que não enxergam os povos indígenas dentro desse país perfeito, que não existe, e insistem em não escutar e não enxergar os povos originários”, conclui ela.

Questão de representatividade

Fabiane Santos, PhD em Antropologia Social pela Universidade de Campinas (Unicamp), concorda que indígena é um termo mais apropriado, até porque está mais próximo de “originário”, também muito usado para se referir a povos com raízes em determinado local.

“Quando falamos ‘índio’ estamos falando desse momento em que essas pessoas, tão diversas e pertencentes a línguas e povos diversos, foram vistas e ‘classificadas’ pelos colonizadores”, afirma ela. “Então a substituição dos termos tem a ver com a busca de uma forma mais adequada e respeitosa de falar de uma diversidade que não cabe em um termo só, mas que a gente precisa para falar desse contingente da população. Parece uma mudança pequena, mas tem um significado político importante: trata-se de reconhecer os indígenas como protagonistas de sua própria história”.

Segundo a antropóloga, a escolha do termo “indígena” foi acertada porque ele tem “uma carga simbólica que tem esse marcador, da alteridade”.

Papel da Funai

Santos também diz que a Funai passa por um momento de reformulação, que inclui a escolha da deputada indígena Joênia Wapichana para a presidência do órgão. Apesar de negar que a Funai tenha sido um órgão paternalista, ela diz que a base de seu funcionamento, a chamada “tutela”, ainda não é o ideal.

“A gente precisa entender a diferença entre o que chamamos de ‘paternalismo’ e o conceito de tutela que o Estado brasileiro preconiza em relação aos povos indígenas no Brasil. Paternalismo é clientelismo; a tutela, como aparece na legislação, é a atribuição da responsabilidade que o Estado brasileiro tem com essa população, na garantia do usufruto das terras e dos direitos à educação, saúde, segurança. Eles estão apoiados na constituição e em leis como o “Estatuto do Índio” e na lei 5.391 de 1967, que criou a Funai em substituição ao Serviço de Proteção ao Índio. Essa legislação é a que constrói este conceito. Tutela é adequada? Não, certamente ela precisa ser revista, assim como o termo “índio”. Como é uma lei oriunda do período ditatorial, possui muitos ranços da época, como a ideia de ‘integração’, mas os projetos de lei que buscavam modernizar esta legislação e torná-la mais adequada ao século 21 não avançaram muito no Congresso, ao contrário de outros, que buscavam dificultar o acesso a direitos como a demarcação, que foram rapidamente desengavetados nos últimos anos”, afirma ela.

Governo anterior

Sobre os quatro anos da gestão Bolsonaro, Santos afirma que houve uma tentativa de “desidratação do órgão” para que ele não fosse capaz de cumprir suas funções. Ela cita um dossiê feito pela organização Indigenistas Associados, formada por servidores e ex-servidores da Funai, que fez um levantamento do que representou a gestão Bolsonaro.

Para evitar que isso aconteça novamente, ela afirma que a sociedade brasileira precisa repensar a forma como vê os povos indígenas. “As pessoas, especialmente os setores que movimentam a economia, precisam parar de achar que indígena atrapalha o desenvolvimento do pais. Eles são mantenedores de formas importantes de capitais econômicos – os biomas, as espécies animais e vegetais. Desenvolveram conhecimentos refinados sobre essas coisas. No mundo contemporâneo, eles são a expressão da diversidade. Tudo isso é um tesouro que precisamos enxergar com outros olhos”, afirma a antropóloga.