13/10/2019 - 20:28
Tudo no Círio de Nazaré, comemorado em Belém do Pará, é de proporções gigantescas, amazônicas. Começando pelo número de romarias, 12 ao total, ao longo da quinzena de festejos em torno de Nossa Senhora de Nazaré. Vejamos: são o traslado da imagem peregrina da Santa para a cidade de Ananindeua, a romaria rodoviária, o círio fluvial, a moto romaria, a ciclo romaria, a romaria dos corredores, a trasladação, o círio – que é a mais esperada das romarias – a romaria da Juventude, o círio das crianças, a procissão Recírio, 15 dias após o círio e a procissão da festa.
Quem conta esses detalhes é a jovem Carolina Gonçalves, voluntária do Museu do Círio. Pequeno espaço próximo à Basílica onde os viajantes podem aprender um pouco sobre a história dessa grande festa religiosa. Lá Carolina conta sobre o caboclo Plácido, que em meio ao antigo Igarapé Murucutu (aterrado para dar espaço para a construção da cidade) encontrou a imagem de uma santa, isso no ano de 1700. Ele pegou a escultura, de 28 cm e feita de madeira, e a levou para sua casa. “Toda vez que ele dormia, acordava e notava falta da imagem, voltando para a beira do Igarapé, encontrava novamente a santa por lá. Ele então decidiu construir uma pequena capela, feita de palha, para abrigá-la. A história correu os vilarejos mais distantes e muitos começaram a viajar quilômetros a fim de conhecer Nazinha, como os locais gosta de se referir.
Em 1790, o governador Francisco Coutinho pensou em organizar uma grande feira de produtos locais da região. Ele no entanto adoeceu e fez uma promessa que, se melhorasse, faria uma missa em homenagem à Mãezinha. Ele se curou e esse é o primeiro milagre atribuído à Nossa Senhora. Em 1793, aconteceu aquele que é considerado o primeiro Círio da história. “A gente não sabe quem a levou até o Igarapé, só sabemos que ela e Deus escolheram o lugar que gostaria de permanecer.” Assim, em rápidas palavras, em meio à casinhas de madeira feitas por fiéis, Carolina conta a saga da santa e sua relação intrínseca com Belém.
A história prossegue para a corda, cheia de simbolismos na festa, Carolina nos conta: “Em um dos Círios, a Berlinda, o suporte feita de cedro para abrigar a imagem atolou próximo à região do Mercado Ver o peso. Na época a Santa era transportada em Carro de Boi. Nada conseguia remover o veículo do alagadiço. Alguém teve a ideia de pegar uma corda, e aí sim, conseguiram tirar o andor de lá. Desde então não há Círio que não tenha corda, ela é o cordão umbilical entre os romeiros e Nossa Senhora. Algumas vezes os organizadores quiseram retirar a corda, mas o povo não deixa”, resume Carolina.
Continuando com os números amazônicos, são oitocentos metros dela, divididos em 400 metros utilizados na Trasladação do sábado à noite, no percurso de mais de três quilômetros entre a Basílica a Igreja da Sé e mais 400 metros usados para conectar os fiéis no percurso de volta do domingo, quando a imagem retorna da Sé para a Basílica. Produzida com sisal e curiosamente produzida e trazida de Santa Catarina, tudo sem custos. Empresários devotos do Sul do País bancam as despesas, nos conta a guia do Museu. Além da Corda há anos a organização do Círio introduziu as chamadas “Estações”, estruturas geométricas feitas de alumínio, onde os romeiros vão as puxando, ao todo são quatro, a primeira possui 37 metros de comprimento, e a cada uma na sequência seu tamanho em comprimento e largura vai diminuindo. Os mais antigos relembram a dificuldade que era puxar a corda antes do surgimento das “Estações”.
Apesar da grandiosidade expressa no número de romarias feitas para celebrar a Santa, nas cenas cinematográficas do Círio Fluvial, com seus incontáveis barcos, barquinhos, lanchas, chalanas, jet skis e motos aquáticas de todos os tipos, nos milhões de pessoas das principais romarias — de sábado e domingo — o que comove o forasteiro são as pequenas histórias, pequenos atos que se mostram tão ou mais grandiosos quanto os exemplos citados.
No sábado de tarde, o casal Tales Peterson e Claudia Liliana, naturais do Estado do Maranhão, erguiam o pequeno João Lucas Barbosa, de 4 meses, em frente da Basílica Nossa Senhora de Nazaré, local onde originalmente era o Igarapé Murucutu, nos anos 1700. Eles participavam do lado de fora da Igreja, pois não restava mais espaço dentro da Basílica, assistindo a missa conhecida como descida do Glória. Cada milímetro de espaço totalmente tomado pelos romeiros e fiéis. Todos querendo acompanhar a retirada – que acontece poucas vezes ao ano – da imagem original da Santa de sua redoma de cristal. O casal conta à reportagem que há anos tentava engravidar. “Claudia já havia feito três inseminações artificiais. Somos casados há sete anos e nada. Fizemos uma promessa para Nossa Senhora e conseguimos ter nosso filho, João Lucas Barbosa”, as lágrimas escorriam do rosto do pai, Tales Peterson enquanto erguia o bebê.
Na Casa de Plácido, ponto de apoio ao Romeiro, muitos chegam com os pés feridos e cheios de bolhas, com desidratações provocadas pelo calor excessivo da Amazônia. Lá eles encontram a acolhida dos voluntários que lavam os pés dos promesseiros, fazem massagem nos mais necessitados e servem refeições para os famintos depois de horas de caminhada. Um desses fiéis, João Souza, que caminhou cerca de 30 quilômetros para chegar à capital dá um abraço apertado em Lucia Anunciação, de 42 anos, após ter os pés lavados por ela. Não falam palavra alguma, mas o gesto diz tudo. A verdadeira grandiosidade do Círio está nos pequenos detalhes.
Público ‘flutua’ em meio à multidão
Todos dizem com orgulho na cidade que o Círio é maior manifestação religiosa do Brasil. Alguns ainda ressaltam que é a maior do mundo. Difícil duvidar de tal afirmação depois de presenciar ao vivo a procissão.
Tudo começa logo de madrugada, quando os romeiros com mais fôlego chegam na região do mercado Ver o Peso e da Estação das Docas para garantir seu lugar na corda. Como os 400 metros de sisal e as quatro estações são objeto de cobiça, muitos não hesitam em chegar as vezes com mais de doze horas de antecedência para não perderem a oportunidade de ficar mais próximos da Santa, ao segurarem na corda. É o caso de Sebastião dos Santos, de 60 anos, que chegou às 19h30, foi até o local que ficam armazenadas as estruturas das estações e ajudou a transportar até o ponto de saída. Teria uma espera de doze horas pela frente, esse ano a procissão saiu às 7h30 da manhã de domingo.
“Há 27 anos venho todos os anos. Isso porque pedia a graça para “mãezinha”, pois estava com um câncer e me curei. O dia que eu me sinto melhor é quando estou aqui. Não sinto dor nenhuma. Lava a alma e renova o espírito”, completa. Ao lado de Sebastião, aguardava ansioso sua estreia na procissão, José Miguel Machado da Cruz, de 16 anos. Ele chegou às 2 horas da manhã. Veio com o tio Sanderlei Cruz, de 40 anos, que atendeu um pedido do garoto para participar carregando a estação. “Acredito que vêm para participar, têm uma palavra final: agradecimento. A palavra final é essa. Isso é o que move as pessoas a virem para cá”.
Quando o Círio começa, inicia-se uma forte aglomeração em torno da corda. As pessoas chegam a “levitar” ou “flutuar” em certos momentos. Enfermeiros ficam a postos colocando em macas as pessoas que passam mal devido ao forte calor. Há uma regra não escrita, mas que todos os participantes sabem, não se pode ir calçado carregar a corda. Todos vão descalços para não machucar o pé de ninguém. Voluntários e promesseiros distribuem água por todo o percurso. Muitas vezes a água é arremessada sobre o corpo e a cabeça que chegam encharcados ao fim do percurso. Ao final da Procissão, próximo da chegada à Basílica, tio e sobrinho completam juntos, lado a lado os mais de três quilômetros, e vão embora rumo ao almoço do Círio com o restante da família.