16/04/2021 - 8:02
A principal associação de médicos defensores do chamado tratamento precoce contra a covid-19, que inclui medicamentos ineficazes contra a doença, tem como um de seus apoiadores um grupo empresarial goiano que fabrica a ivermectina, um dos remédios que compõem o tratamento. A companhia é a responsável por desenvolver e administrar a plataforma online oferecida no site da associação aos médicos interessados no tema do tratamento precoce.
A Associação Médicos pela Vida é o principal grupo de profissionais a apoiar o uso de remédios sem eficácia contra a covid, como a hidroxicloroquina, a azitromicina e a própria ivermectina. Foi iniciativa da entidade a publicação de informes publicitários favoráveis ao “tratamento precoce” em oito jornais de grande circulação no País em fevereiro e a colocação de outdoors propagandeando a terapia ineficaz em várias cidades brasileiras. Representantes da associação também já se encontraram, em setembro, com o presidente Jair Bolsonaro, outro apoiador das terapias.
Desde março, no auge da pandemia no País, a entidade passou a realizar em seu site “superlives multidisciplinares” exclusivas para médicos nas quais são ensinados os protocolos de tratamento. Para o evento, a associação ofertou aos profissionais com CRM uma plataforma online na qual, além de assistir às lives, os médicos podem assinar os manifestos do grupo, se registrar em um cadastro público de doutores que prescrevem os remédios e acessar materiais sobre o tema. A plataforma, chamada de iMed, foi desenvolvida e é mantida pelo Grupo José Alves, proprietário da farmacêutica Vitamedic, uma das fabricantes da ivermectina no Brasil.
A ligação entre a entidade e a empresa, que pode configurar conflito de interesse, segundo o Código de Ética Médica, foi exposta em uma das lives fechadas da associação. O elo foi revelado pelo jornalista independente Victor Hugo Viegas Silva em sua página no site Medium e confirmado pelo Estadão, que também teve acesso aos vídeos.
No evento, em 10 de março, o presidente da associação, o oftalmologista pernambucano Antônio Jordão, convida o diretor de tecnologia do grupo empresarial, Carlos Trindade, a apresentar a plataforma criada para os médicos. Na introdução do convidado, Jordão pede a Trindade que explique “como os médicos vão fazer a interação com a nossa plataforma atual, graças à ajuda de vocês”.
Ao apresentar o sistema, Trindade detalha as funcionalidades e explica como os médicos devem proceder. “O primeiro ponto principal é como os médicos se comunicam com o grupo técnico e com o grupo de apoio para ter os seus problemas resolvidos: é pelo centro de suporte que nós criamos”, detalha o diretor, destacando em seguida que a empresa montou uma equipe de TI dedicada exclusivamente ao atendimento dos médicos.
O número de telefone no site da associação para suporte aos profissionais tem código de área 62, de Goiás, onde está a sede do grupo empresarial. Na apresentação, Trindade, que também é reitor da Unialfa, universidade goiana de propriedade do Grupo José Alves, também demonstra que a corporação, além de ter desenvolvido a plataforma, é quem a administra e tem acesso aos dados dos cadastrados. Na live, ele mostra aos participantes a tela de gerenciamento, na qual aparecem 9.691 médicos.
O diretor também destaca que o grupo empresarial abastecerá a plataforma com uma biblioteca na qual serão publicados artigos que “comprovam as evidências científicas” do tratamento precoce e notícias sobre o tema. “Registraremos todas as notícias que saem em mídia que falam sobre cidades, prefeituras e empresas que estão adotando o tratamento precoce e preventivo, e quais são os impactos da adoção desses tratamentos.”
Apesar do apoio claro do grupo empresarial que produz a ivermectina aos médicos defensores do tratamento precoce, o presidente da associação não deixa claro na live nem no site da entidade tal conflito de interesse, o que é obrigatório pelo Código de Ética Médica. Relações de médicos com a indústria não são proibidas, mas devem ser declaradas, segundo prevê o artigo 109 do código. De acordo com o documento, é vedado ao médico “deixar de declarar relações com a indústria de medicamentos, órteses, próteses, equipamentos, implantes de qualquer natureza e outras que possam configurar conflitos de interesse, ainda que em potencial”.
Sem resposta
O Estadão procurou a Associação Médicos pela Vida para esclarecer qual é a relação da entidade com o Grupo José Alves e, por consequência, com a Vitamedic. A reportagem enviou perguntas sobre qual tipo de apoio foi fornecido pela empresa à associação e por que essa relação não foi declarada no site da entidade, como prevê o Código de Ética Médica. Também questionou se o grupo empresarial fez repasses financeiros à associação e aos seus integrantes. Indagou ainda quem foram os financiadores dos informes publicitários publicados em jornais e dos outdoors. Nenhuma das perguntas foi respondida.
A assessoria de imprensa da associação prometeu na terça-feira que um dos coordenadores do grupo daria entrevista. Nesta quarta, porém, a entidade recuou e disse que os coordenadores haviam se reunido e decidido não se pronunciar. A reportagem também tenta, desde segunda-feira, contato com o Grupo José Alves para esclarecer o tipo de apoio dado à associação – sem retorno.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.