25/09/2022 - 9:10
Um golpe de mosquete colocou fim, em algum momento do histórico 25 de janeiro de 1835, à vida de um homem africano traficado para a Bahia para servir como escravo. Ferido no combate corpo a corpo que marcou a Revolta dos Malês, rebelião liderada por muçulmanos das mais importantes da história do Brasil, ele foi levado ao Hospício de Jerusalém, em Salvador, onde morreu. A história não sabe o nome deste homem nem o que aconteceu com o corpo dele, embora se suponha que tenha sido sepultado em uma cova comum no Campo da Pólvora, onde outros rebeldes, indigentes e escravos eram enterrados. Já a cabeça foi parar longe: em uma coleção de 150 cabeças humanas, separadas por raça e nação, usadas por alunos de Medicina da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.
Se os documentos que tratam da chegada da cabeça ao país estiverem corretos, estima-se que a relíquia macabra tenha desembarcado na América em 1836. Mas, se depender dos descendentes espirituais do rebelde, ela não ficará em Harvard por mais muito tempo. Na Bahia, a comunidade muçulmana e nigeriana está disposta a brigar para repatriar os restos humanos do homem e lhe conceder um ritual fúnebre apropriado. É o que diz Misbah Akkani, nigeriano muçulmano e iorubá – assim como, provavelmente, o dono do crânio – que hoje integra a representação da Embaixada da Nigéria na Bahia.
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“É de suma importância para nós tirar esse crânio de lá e trazer para Bahia, porque a importância dele é aqui no Brasil, onde ele vivia, onde ele foi morto de forma injusta. É importante para provar que aquilo aconteceu aqui, no Campo da Pólvora, onde hoje tem um fórum de Justiça, e onde foram cometidas muitas injustiças contra essas pessoas que simplesmente estavam lutando pelo seu direito de existir”, afirma Akkani. Naquele 25 de janeiro de 1835, centenas de escravos e libertos percorreram as ruas de Salvador convencendo outros a se rebelarem contra a escravidão e a imposição do catolicismo.
Em janeiro de 2021, o presidente da Universidade Harvard, Lawrence Bacow, publicou uma carta em que reconhece o atraso na identificação dos restos humanos de mais de 22 mil nativos americanos que fazem parte do acervo de dois museus da universidade – o Peabody e o Warren -, pede desculpas pelo passado escravista da instituição e dá prioridade à identificação e repatriação dos restos humanos de 15 indivíduos de ascendência africana que ainda estavam vivos em período avançado da escravidão americana. “Esses indivíduos representam um capítulo da nossa história que devemos enfrentar”, escreveu.
Já em junho deste ano, o The Harvard Crimson, jornal estudantil da própria universidade, publicou que um relatório preliminar do comitê identificou, além dessas 15 pessoas, os restos de mais quatro escravizados no Caribe e no Brasil. O homem apontado como um dos rebeldes da Revolta dos Malês, em Salvador, é um deles.
SEM PRAZO. Procurada, a universidade disse que não iria se pronunciar até a conclusão de um relatório neste ano. Nesta quarta-feira, após a publicação da reportagem online, um dos pesquisadores consultados enviou o relatório com recomendações, assinado pelo comitê e pelo presidente de Harvard. As recomendações para os restos mortais dos 19 escravizados é de que a universidade procure as comunidades de origem ou os descendentes de linhagem para que sejam feitos “enterro, reintervenção, retorno às comunidades descendentes ou repatriação dos restos mortais”. Não há prazo para que isso aconteça.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.