21/04/2022 - 9:07
Desde 2014, um dos times de maior sucesso da Ucrânia, que sempre contou com vários brasileiros em seu elenco, passou a ser obrigado a mandar jogos em diferentes cidades. O sonho, no entanto, é um dia voltar para casa.Quando o exército russo invadiu a Ucrânia em 24 de fevereiro deste ano, Mykola Matwijenko dormia ao lado da esposa e do filho em Kiev. “Por volta das 5h, ouvi explosões no lado de fora da janela, e imediatamente pulamos”, conta ele à DW. “Passamos a noite dentro do carro, no estacionamento, até que recebemos a notícia de que Kiev estava sob ataque, e tivemos que sair”. Matwijenko atua como zagueiro na seleção ucraniana e também no Shakhtar Donetsk, um dos maiores clubes de futebol da Ucrânia, com sede na região de Donbass, no leste do país, próxima da fronteira com a Rússia e disputada por ucranianos e separatistas apoiados pela Rússia desde 2014.
A partida que provavelmente decidiria o Campeonato Ucraniano desta temporada estava marcada para o fim de semana de Páscoa: Shakhtar Donetsk contra Dynamo de Kiev, primeiro contra o segundo colocado. Apenas dois pontos separavam os times na tabela de classificação quando a competição foi suspensa após a rodada de número 18, no fim de fevereiro. Mas ninguém mais pensa sobre isso no Shakhtar. Inclusive o website do clube mudou de tema, passando a informar sobre a guerra. Atualizações do Ministério da Defesa da Ucrânia podem ser lidas diariamente na página. A invasão russa à Ucrânia mudou a vida do clube que há anos vem desafiando as probabilidades.
Agora, em vez de buscar pontos em campeonatos, o Shakhtar Donetsk entra em campo em “jogos pela paz”, a fim de arrecadar fundos para as vítimas da guerra e os militares ucranianos. Nessas partidas, também atua o goleiro da seleção ucraniana Anatolij Trubin, que desde muito jovem joga na principal liga da Ucrânia. Na primeira partida, contra o Olympiakos, da Grécia, os jogadores do Shakhtar usaram camisetas com os nomes de cidades que estão sob ataque, além da bandeira do país sobre os ombros. “Queremos que essas cidades sejam conhecidas por todo o mundo”, afirma Trubin à DW. “Ainda não consigo entender como pode haver uma guerra como essa, onde pessoas morrem todos os dias, no século 21”. Ele sente tristeza e um sentimento terrível ao pensar “que isso está acontecendo no país que amo e no qual cresci”.
Um estádio 5 estrelas em desuso
Matwijenko, que joga pelo Shakhtar há 13 anos, teve de fugir de Donetsk em 2014. “Eu tinha 17 anos, voltei para casa de trem, depois das minhas férias de verão. No dia seguinte, não sobrou praticamente nada da estação, e fomos imediatamente levados para outra cidade”, lembra-se, fazendo referência ao ano em que o Shakhtar jogou pela última vez no estádio, a Arena Donbass, que foi financiada pelo oligarca ucraniano e presidente do clube, Rinat Akhmetov, por cerca de 176 milhões de euros.
O investimento deu frutos: na temporada 2012/2013, em torno de 40 mil torcedores por jogo frequentaram o estádio, erguido para receber a Eurocopa – o Campeonato Europeu de seleções – em 2012, e que foi premiado pela UEFA como 5 estrelas, a mais alta classificação para estádios de futebol. Em 2009, a melhor arena da Ucrânia foi inaugurada com pompa. Além do então presidente do país, Viktor Yushchenko, a estrela pop americana Beyoncé realizou uma performance aclamada – algo completamente impensável devido à atual situação de Donbass hoje.
Em agosto de 2014, o estádio foi severamente danificado em meio aos combates entre tropas governamentais e separatistas pró-Rússia. Por isso, foi fechado e segue abandonado. Desde então, o Shakhtar tem jogado no exílio diante de uma média de público de sete mil espectadores. Até 2017, as partidas com mando do time eram realizadas em Lviv, que fica a cerca de 1.200 quilômetros a oeste de Donetsk. Depois, foram transferidas para Kharkiv, 300 quilômetros da cidade original do clube.
No entanto, após um incidente em que guardas de fronteira russos dispararam em três navios militares ucranianos, no final de 2018, levando a Ucrânia a impor lei marcial no distrito administrativo de Kharkiv, que fica próximo da fronteira, o Shakhtar teve de procurar outra casa mais uma vez. A partir de então, os jogos “em casa” vinham ocorrendo em Kiev, onde os jogadores já moravam e treinavam.
Nos últimos anos, a Arena Donbass tem sido usada com frequência como um centro de ajuda. Um retorno do futebol é praticamente fora de cogitação, ainda que Matwijenko afirme: “Eu costumava ir à Arena Donbass quando era jovem e sempre foi meu sonho jogar nesse estádio maravilhoso. Todos nós acreditamos que um dia poderemos voltar a jogar futebol lá”.
O homem por trás do Shakhtar: Rinat Akhmetov
Mesmo contra todas as probabilidades, o Shakhtar Donetsk escreveu uma história de notável sucesso nas últimas décadas: conquistou 13 títulos nacionais e chegou várias vezes às oitavas de final da Liga dos Campeões, assim como às semifinais da Liga Europa em 2020. A equipe venceu a Copa da UEFA em 2009, ao bater o Werder Bremen, da Alemanha, na final – a maior conquista internacional da história do Shakhtar.
Todo esse sucesso está invariavelmente ligado ao dinheiro de um homem: o proprietário Rinat Akhmetov, ex-boxeador profissional e, supostamente, o homem mais rico da Ucrânia, com uma fortuna estimada em sete bilhões de euros. Ele assumiu o clube no começo dos anos 1990, época em que o Shakhtar estava à beira da falência. Desde que tomou posse como presidente, investiu mais de 1,5 bilhão de euros no clube.
Grande parte desse dinheiro foi destinada à contratação de jogadores brasileiros, que contribuíram decisivamente para o sucesso do Shakhtar. Os ucranianos gastaram quase 300 milhões de euros com atletas do Brasil, incluindo Fernandinho, atualmente no Manchester City, e Douglas Costa, que depois foi para o Bayern de Munique. Os 13 brasileiros que atualmente têm contrato com o Shakhtar já estão em seu país natal depois de dias de medo na Ucrânia. Alguns tiveram de se esconder com suas famílias no porão de um hotel em Kiev por quase duas semanas.
No entanto, o andamento normal do futebol na Ucrânia é momentaneamente inconcebível. Uma questão de vida ou morte. Na última quinta-feira, o CEO do Shakhtar, Sergei Palkin, relatou no Facebook: “Um dos nossos funcionários, um treinador das categorias de base, morreu ontem. Ele foi atingido por um fragmento de uma granada russa. A Rússia está matando ucranianos. Parem com essa loucura!”
O sonho da Liga dos Campeões
Anatolij Trubin sonha em um dia voltar a jogar a Liga dos Campeões com o Shakhtar: “Meus sonhos mudaram. Quero que a paz retorne à Ucrânia, e sonho com um jogo do Shakhtar pela Liga dos Campeões em uma Arena Donbass lotada.”
É incerto, porém, se todos os jogadores do Shakhtar Donetsk irão se reencontrar novamente um dia. No início de março, a Fifa autorizou que todos os profissionais estrangeiros empregados na Rússia ou na Ucrânia rescindissem seus contratos sem aviso prévio e passassem a integrar outros clubes a partir da próxima temporada. O futuro do Shakhtar é mais incerto do que nunca. Na abertura do então novo estádio, em 2009, o ex-presidente ucraniano, Viktor Yushchenko, declarou: “Que muitas vitórias sejam conquistadas para a Ucrânia aqui na Arena Donbass”. Se o Shakhtar terá a chance de fazer isso novamente é questionável.
O que é certo para Matwijenko, entretanto, é que o clube não jogará mais contra equipes russas: “Não, não vamos mais jogar contra times russos. Espero que o mundo perceba que esse é um verdadeiro genocídio e que tais pessoas devem ser isoladas”.