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Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, um dos protagonistas do Plano Real e pai da âncora cambial, não fuma há dez anos. Deu seu último trago no dia 30 de junho de 1994, véspera do lançamento da nova moeda. Sua década de abstinência coincide com o período em que a economia brasileira também se livrou de um vício histórico: a inflação galopante. Assim como aquele foi seu último cigarro, o Real, que completa uma década nesta semana, foi concebido para ser o pacote de estabilização derradeiro, definitivo. Passados dez anos, Franco, aos 48, decidiu abrir seu baú de relíquias e anotações. Ele tomava nota de tudo nas reuniões e nos momentos decisivos. Também fechou as complexas equações matemáticas que deram origem à URV (Unidade Real de Valor), embrião da nova moeda. Fernando Henrique Cardoso o definia como o mais ?laborioso? membro da equipe. Persio Arida, outro economista do time, o chamava de ?relator?. Seus documentos, amontoados num quarto de seu apartamento no Rio de Janeiro, ainda guardam revelações. Uma delas, a de que Fernando Henrique, ainda ministro da Fazenda, chegou a pedir demissão três vezes a Itamar Franco, na véspera da implantação da URV. Outra, a de que a economia brasileira quase seguiu o modelo argentino de dolarização ? à época, Persio Arida e André Lara Resende pensavam, a sério, na hipótese. Gustavo Franco ainda não decidiu que destino dará às suas anotações ? pensa, por exemplo, em escrever um livro. No aniversário dos dez anos do Real, porém, ele abriu seus arquivos à DINHEIRO, mostrou seus papéis e falou sobre os bastidores do plano e daqueles tensos dias que abriram uma nova fase econômica no País. Quanto ao cigarro, jurou que só volta a fumar se a inflação ressurgir das cinzas. A seguir, a sua versão.

 

 

FHC SE DEMITE
Tensão máxima à véspera
do lançamento do plano
Há muitos cérebros e mãos por trás do Plano Real. Obra coletiva, foi gestada lentamente, sem o açodamento e os delírios dos pacotes que, até então, marcavam a rotina da economia brasi-
leira. A maior parte da equipe que o formulou chegou ao governo em maio de 1993 ? mais de um ano antes do anúncio do programa de estabilização. Oito meses foram gastos em discussões, por vezes monótonas e excessiva-
mente teóricas, até que se chegasse ao modelo da URV. ?Tivemos dois momentos de grande tensão?, recorda Gustavo Franco, à época secretário-adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda. O primeiro foi a aprovação, pelo Congresso, da Lei Paim, projeto do senador Paulo Paim que fixava um salário mínimo irreal e ameaçava colocar o País na rota da hiperinflação. ?Fomos ao Fernando Henrique, que garantiu que Itamar vetaria a lei?, lembra.

 

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ITAMAR E FHC: O presidente queria congelar os preços

 

Nada se compara, no entanto, ao que se passou no momento da apresentação do plano ao restante do ministério de Itamar, na véspera do lançamento. O presidente da República convocou FHC ao Planalto para explicar a reforma monetária aos demais ministros. O que era para ser uma explanação, transformou-se em um acalorado debate, que durou oito horas e meia. O clima já estava quente quando Gustavo Franco foi chamado às pressas. E presenciou o professoral FHC esticar a corda ao limite.

?Eu vi Fernando Henrique pedir demissão três vezes?, confidencia. ?A primeira, quando os militares questionavam a forma de conversão dos seus salários. Queriam que fosse pelo pico, e não pela média. Depois, veio a história do salário mínimo de 100 dólares, trazida pelo Walter Barelli, um sujeito que leva os interlocutores à exasperação. Por último, o Itamar pensou em congelar alguns preços, principalmente dos remédios, setor em que ele tinha fixação. Como era uma idéia do presidente, foi mais difícil reverter. Eu disse que o controle de preços seria muito nocivo e levei uma bronca do presidente. Depois da terceira pausa para comer sanduíches, fomos para um canto e discutimos uma espécie de compensação. Era um artigo que dizia que os preços, quando considerados abusivos, seriam discutidos em câmaras setoriais. Mas isso era algo inócuo. Demos uma volta no Itamar.?

A DOLARIZAÇÃO DE LARA E ARIDA
Por pouco o Brasil não copiou o plano de Cavallo
Franco era considerado uma espécie de menino-prodígio em uma equipe que tinha estrelas do meio econômico como Edmar Bacha (então assessor especial da Fazen-
da), Persio Arida (presidente do BNDES) e André Lara Resende (negociador da dívida externa) ? todos com a paternidade de outros planos, como o Cruzado, no currículo.

?No fim de 1993, as conversas sobre um plano de estabilização cresceram. Não houve um ponto zero para as discussões do plano. Era um jantar aqui, um almoço ali, um paper acadêmico acolá?, recorda Franco.

?A ala liderada pelo Persio Arida e pelo André Lara Resende estava mais propensa a discutir a dolarização, ao estilo argentino. Era a idéia do currency board. E é bom que se diga que, naquele momento, a Argentina havia estabilizado e vinha crescendo muito. Era o modelo da vez. Mas os outros, eu, o Pedro (Malan) e o Edmar (Bacha), éramos contra.?

A dolarização de Cavallo durou até dezembro de 2001. Os bons resultados do seu plano mostraram-se ilusórios e, ao seu final, lançaram a Argentina numa violenta recessão.

?Quando as coisas avançaram, começamos a produzir documentos típicos de economistas, bem abstratos. Eu acabei sendo o relator do Real, assim como o Persio, anos antes, foi o relator do Cruzado. Eu levava o papel, anotava e chegava na reunião seguinte com as coisas mais ou menos resolvidas. ?

O NASCIMENTO DA URV
Uma moeda para não bagunçar os contratos
Um dos documentos mais preciosos dos arquivos de Gustavo Franco é a minuta, ainda com anotações feitas à mão, da lei que implantou a URV. Criação coletiva, o instrumento de conversão de contratos foi uma espécie de ovo de colombo do Real. Tinha parentesco com o plano Larida, de Lara Resende e Arida, e trazia idéias desenvolvidas por Francisco Lopes. Mas foi Franco, o relator, quem deu a forma final.

?Num determinado momento, percebemos que era preciso transformar os nossos papers de economistas numa lei. E aí apareceram os problemas. Deu um tilt completo. Como fazer um plano sem bagunça, sem quebrar contratos? Já estávamos convencidos a não dolarizar. O plano Larida estava dificultado pelas conseqüências legais. Decidimos fazer um plano gradual para que as pessoas, voluntariamente, pudessem refazer os seus contratos.?

Quando surgiu a fórmula definitiva?

?O grande momento foi a produção do documento de arquitetura da URV, em janeiro de 1994. Numa reunião, cheguei com a idéia de que deveríamos ter um padrão bimonetário. O cruzeiro continuaria como meio de pagamento e a URV seria uma moeda de conta, uma referência. Era como permitir a dolarização, mas com uma segunda moeda nacional, e não uma moeda estrangeira. Quando essa idéia foi apresentada, fez-se um silêncio na sala. Foi um sinal positivo. Nas outras reuniões, sempre que se levava uma solução, todos apontavam problemas. O Persio estava andando pela sala e disse: ?É isso mesmo, tá ótimo?.?

A minuta foi entregue a José Tadeu de Chiara, professor de Direito da USP, que
lhe deu o formato final.

A TROMBADA COM PERSIO
Primeira crise do Real dividiu o Banco Central
Em dezembro de 1994, eclodiu a crise do México. O Banco Central perdeu US$ 9,6 bilhões em reservas e foi forçado a fazer a primeira desvalorização do real, em março de 1995. Foi o primeiro grande teste do Plano Real, logo no princípio do primeiro mandato de FHC. E, também, a primeira grande trombada dentro da equipe que formulou o plano.

?A mudança cambial foi atrapalhada. Antes, as decisões da equipe eram mais ou menos consensuais e compartilhadas. Ali, a coisa foi diferente. Estávamos decididos a mudar a banda cambial, pois o dólar ainda oscilava entre R$ 0,83 a R$ 0,86. Era preciso mudar e nós produzimos três relatórios. Um foi feito por mim, outro pelo Persio Arida e um terceiro pelo Chico Lopes. Todos foram entregues ao Clóvis Carvalho.”

Havia grandes divergências dentro da equipe?

 

?A discordância não era muito em relação
ao tamanho da desvalorização. Era mais em relação ao ritmo. Eu achava que a mudança deveria acontecer em algumas semanas e o Persio achava melhor fazer tudo de uma só
vez. Aquilo deixou feridas porque o processo decisório não foi bem conduzido. Em vez de escolher uma proposta, a decisão foi conciliar, somar todas elas. Nasceu um bicho com
cabeça de tigre e corpo de girafa.
?

Quem mais sentiu as marcas das feridas foi Arida. A decisão de FHC de criar minibandas para flutuação do dólar e adotar uma política de desvalorização gradual desagradou o presidente do BC, que passou a se sentir isolado e tornou-se alvo de acusações de vazamento de informações privilegiadas a banqueiros amigos. Arida caiu menos de três meses depois, substituído por Gustavo Loyola. Este ficaria no cargo até agosto de 1997, dando lugar a Gustavo Franco.

O QUE DEU ERRADO NO PLANO
?Morríamos de medo da desvalorização?
Entre 1994 e 1996, a economia brasileira cresceu rapidamente ? e sem inflação. Os problemas começaram com as crises da Ásia, em 1997, e da Rússia, em 1998.

?No fim de 1997, a aparição da crise da Ásia não foi tão assustadora. Fizemos um pacote fiscal, o famoso Pacote 51, e estancamos a perda de reservas. Em março de 1998, nós chegamos a ter US$ 74 bilhões. Foi o pico. Naquele momento, eu ainda achava que não era preciso desvalorizar. Como 94, 95, 96 e mesmo 97 haviam sido anos bons, desvalorizar era como colocar um casaco em pleno verão. Na Ásia, o risco-Brasil pulou de 300 pontos para 600 pontos. Mas o pior veio com a Rússia e a quebra do fundo LTCM, nos Estados Unidos, quando o risco saltou para 2 mil pontos. Minha insônia, que começou com a URV, se agravou. Todos morríamos de medo das conseqüências de uma desvalorização.?

 

A FASE DO SACO DE MALDADES
Solitário e com dúvidas,
Franco parte para o ataque
No fim de 1997, o desemprego crescia e a reces-são avançava. O governo lançou um pacote de 51 medidas fiscais e elevou juros. Franco, então, cunhou a expressão saco de maldades.

?A expressão saco de maldades, que eu soltei numa conversa com uma jornalista, foi utilizada para descrever a postura que o Banco Central teria em relação ao mercado. Para defender a estabilidade, era preciso combater os especuladores e as forças contrárias ao real. Eu sabia que não tinha o mesmo apoio de antes, mas não me importava muito com popularidade. O que agravava tudo era a percepção de que o vento do mercado internacional havia virado ? e de forma muito repentina.?

O sr. tinha convicção de que estava certo?

?Isso me trazia muitas dúvidas e eu não tinha muita gente com quem dialogar. Era uma posição solitária. Ultimamente, eu tenho conversado muito com meu travesseiro e às vezes me pergunto se teria sido melhor fazer algo diferente. Quem sabe se em março de 1998, com US$ 74 bilhões em reservas, não teria sido o momento de liberar o câmbio? Mas, em agosto de 1998, quando estourou a Rússia, o que teria acontecido com o Brasil se o câmbio já tivesse flutuado? Ninguém saberia dizer. Eu mesmo não tenho a resposta. E eu asseguro que a disputa da reeleição, em 1998, não pesou na decisão de não desvalorizar.?

 

O PAVOR TOMA CONTA DO FMI
Com receio de errar, Fundo faz
acordo recorde com o País
Gustavo Franco negociou o maior acordo já feito entre o FMI e o Brasil, com um empréstimo de US$ 41 bilhões. Na época, conta, um trunfo inesperado ajudou a conseguir tanto dinheiro:

?Em setembro de 1998, já estávamos convictos de que não haveria jeito de segurar a economia sem ir ao FMI. Conversamos com muita gente. Com o Robert Rubin, do Tesouro, o Alan Greenspan, do Federal Reserve, e o Stanley Fischer, do Fundo. Eles estavam apavorados e com um certo complexo de culpa porque se dizia que a Rússia estourou por não ter tido apoio do FMI. Então vieram com a idéia de que o pacote fosse grande para que ninguém achasse que pudesse dar errado.?

Mesmo uma cifra tão alta não trouxe tranqüilidade ao País. O que aconteceu?

?Eu achava que, com isso tudo, seria possível navegar e fazer a transição do primeiro mandato para o segundo sem atropelos. Mas recebíamos sinais de que o Fernando Henrique queria mudar a economia. O José Serra, por exemplo, não foi sabotador do real, queria assumir a liderança do real.?

O DIA EM QUE FRANCO CAIU
O presidente FHC liga e avisa: ?Vou trocar a guarda?
Gustavo Franco afirma que, em dezembro de 1998, já estava decidido a des-
valorizar o real. Mas FHC, que iniciava o segundo mandato, não se convenceu
e lhe comunicou da demissão.

?Em dezembro, levei uma proposta de desvalorização ao presidente. Disse a ele que seria preciso antes elevar os juros e vi que ele não gostou. Naquele momento, o Chico Lopes precipitou a discussão quando disse ao presidente que tinha uma fórmula melhor para desvalorizar. Era o caso de optar. Numa quinta-feira, dia 7 de janeiro de 1999, fui chamado ao Palácio do Planalto. Conversei durante horas com Fernando Henrique. Um dia depois, ele ligou e disse: ?Vou fazer a troca de guarda?.?

Tem mágoa de FHC?

?Hoje eu entendo a decisão do Fernando Henrique. Seria melhor mesmo que
outra pessoa fizesse a mudança cambial, porque eu estava muito identificado
com o regime anterior. Aprendi que no serviço público é assim. Quando a missão muda, você dificilmente muda junto. E depois você deixa de servir. Mas o que o Armínio fez depois, a flutuação cambial com a alta dos juros, é exatamente o
que eu teria feito naquele momento.
?

 

MALAN DISSE QUE IA SAIR
Ministro ameaçou se demitir
e acompanhar Franco
No dia 13 de janeiro, o regime cambial mudou, com a introdução da ?banda diagonal endógena? do economista Chico Lopes. Não deu certo. A fuga de capitais aumentou e o governo se viu forçado a liberar o dólar.

?Na manhã do dia 12 de janeiro, eu estava tomando café e recebi uma ligação pelo celular. Era o Pedro Malan. Ele me disse que também pediria demissão e sairia comigo. Mas também falou que, antes, daria uma passada no Palácio do Alvorada. Eu, que conheço o Fernando Henrique, então respondi: ?Não vou te esperar para a entrevista coletiva?. Sabia que o Pedro acabaria ficando.

O que aconteceu a seguir?

?A única curiosidade que eu tive foi tentar saber como era a mudança do Chico
Lopes. Vi que seria um desastre. Disse ao Malan que não daria certo, em termos muito mais enfáticos. Voltei para o Banco Central, cheguei na minha sala e comecei a empacotar minhas coisas. Fiz um pedido especial, pela primeira vez no serviço público: queria usar o avião do ministro da Fazenda para não ser trucidado pela imprensa. Pedi para minha secretária para fazer uma reserva no vôo das 10h00
de Brasília para o Rio para despistar os jornalistas. Estavam todos lá e eu consegui voar pela Base Áerea para o Rio. Nem passei em casa. Escapei e fui para Itaipava. Só reapareci 15 dias depois.
?