09/05/2024 - 15:25
Ao lembrar os 30 anos do Plano Real em entrevista exclusiva ao Broadcast (sistema de notícias em tempo real do Grupo Estado), um dos seus mentores, o ex-presidente do Banco Central e sócio fundador da Rio Bravo Investimentos, Gustavo Franco, contou que a receita deu certo porque o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, não aceitou abrir mão de nenhum dos pontos elaborados pelos técnicos.
Negociou no Executivo, no Legislativo e no Judiciário cada detalhe e, na reunião feita no domingo, 28 de fevereiro de 1994, quando a Medida Provisória do plano foi assinada, FHC pediu demissão três vezes para defender a integridade da proposta.
Franco foi um dos dois assessores que FHC levou a esse encontro e é considerado o guardião da âncora cambial, que, junto com os juros altos, formou a base para a estabilização. Ele não aceita dizer que algo podia ter sido diferente. E para se defender, dá números.
Veja no os principais trechos da entrevista:
Como foi sua chegada à equipe do Plano Real?
Eu tinha participado da assessoria econômica do Mário Covas, na eleição de 89. Depois, as campanhas do Collor e do PT nos procuraram, no segundo turno. A do PT para uma aliança e a do Collor para aproveitar coisas que a gente tinha feito. Mais adiante, quando o Plano Collor I já tinha afundado, havia dúvidas sobre a permanência da Zélia e existiu a possibilidade de uma aliança com o PSDB, onde José Serra seria o ministro da Fazenda. Houve algumas reuniões, mas essa articulação não rolou e a Zélia fez o Collor II. Quando o Fernando Henrique quis formar a equipe dele como ministro, o universo onde ele primeiro procurou foi esse grupo que se reuniu em torno do Serra, em 91.
Quando é que vocês perceberam que o Plano Real seria aceito?
São muitas etapas. Primeiro a equipe, segundo o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Só chegou à população quando já havia uma equação completinha. Depois dos traumas todos, estávamos decididos a só colocar na rua alguma coisa que fosse 100% sem susto, sem os erros do passado. E o difícil era chegar nesse ponto ultrapassando as dificuldades da política de Brasília.
Quem era o principal negociador de tudo isso?
O grande articulador era Fernando Henrique. A equipe se esforçou e conseguiu manter integridade conceitual e unidade, que é tudo o que os técnicos devem fazer. E deixar o Fernando Henrique articular, que era um talento espetacular para isso. Fazer a costura uma de cada vez, com o presidente Itamar, com os outros ministros, com o Legislativo, as lideranças do PSDB, as outras lideranças do Congresso. Não havia bala de prata que trouxesse todo mundo para dentro. Pelo contrário, estava todo mundo meio contra, dizendo que não poderia haver pacote, congelamento. Estavam todos traumatizados pelo confisco do Plano Collor. A inflação roubava um pouquinho das pessoas todos os dias, mas elas não sentiam.
Qual foi o pior e o melhor momento do Plano Real?
Foi a reunião de 28 de fevereiro de 1994, chamada pelo presidente Itamar, com alguns ministros, para bater o martelo na medida provisória 434. Era o vai ou racha e, anteriormente, já tínhamos feito as malas várias vezes. Mas nesse momento tínhamos a MP pronta para ser assinada. Era um domingo e como assessores Fernando Henrique levou só a mim e o Murilo Portugal. Ficamos na antessala. Quando começou a reunião, Fernando Henrique chamou o Murilo e depois me chamou, eu voltei. Na terceira vez ele achou melhor ficarmos lá. Tive o privilégio raro de assistir a uma reunião ministerial, onde foi batido o martelo do Plano Real. A MP foi para o Diário Oficial, sem nenhum jabuti. Para garantir isso, nessa reunião que durou do meio-dia às oito da noite, o Fernando Henrique pediu demissão três vezes.
Pediu demissão três vezes, conte mais detalhes disso.
Levantava da mesa e dizia, “assim não dá, não quero, vamos embora. Façam vocês o que vocês querem fazer”. O primeiro pedido de demissão foi na discussão da conversão dos salários pelo pico. O segundo foi salário mínimo de US$ 100. E o terceiro foi no congelamento de preços. Se tivesse qualquer um dos três, não tinha plano. O ministro foi absolutamente firme e nas três vezes conseguiu convencer o presidente a seguir o caminho que ele propunha. Depois voltamos para o ministério, festejamos e pensamos que iríamos ter, nos seis meses seguintes, os piores em matéria de trabalho. Mas pensamos que iria ser muito legal, como de fato foi.
E hoje olhando para tudo isso, o que deu certo e o que deu errado no plano?
É difícil dizer o que foi ruim. Tínhamos uma inflação de 50% ao mês em junho de 94, último mês da URV, ou 12.500% ao ano. Em julho a inflação foi de 6,8% ao mês, 120% ao ano. Nos primeiros 12 meses da nova moeda, concluídos em julho de 95, a taxa acumulada foi de 33%. Em meados de 97, a inflação caiu abaixo de 10% ao ano no acumulado de 12 meses. E no final de 97, caiu abaixo de 5% ao ano. Em 98 a inflação foi de 1,6%. Quando me perguntam onde é que eu faria diferente, ou sobre algum erro… Desculpa, me explique o que poderia ser melhor do que isso.
Alguns criticaram a duração que teve a âncora cambial. Por que defendeu o mecanismo por tanto tempo?
À luz dos números que acabei de citar, acho que eu tinha razão. Se fosse diferente os números não seriam esses. Então, quem tivesse outra fórmula melhor é só dizer como é que teria sido melhor. No assunto da política cambial, assim como no assunto mais contemporâneo da política monetária, sempre há uma discussão de dosagem. Me acusam de ter usado a política cambial numa dosagem exagerada, mas a política fiscal não foi a ideal. Tenho a sensação de que, ao longo do tempo, a gente fez as melhores escolhas, que são sempre em condições ruins em Brasília. E nós tomamos decisões que deram certo em condições muito ruins.
A que condições ruins o senhor está se referindo?
Não havia apoio popular e a má vontade era gigantesca. Os tribunais hostis, os políticos desconfiados, todo mundo com seus piores instintos à flor da pele. Isso foi o que a gente enfrentou. Foram condições difíceis e os resultados foram excelentes.
Em sua opinião, o que foi determinante para o sucesso do real?
Alteramos a lógica da governança da moeda e isso era fundamental para estabelecer o real, a solidez da moeda. Foi necessário esvaziar o Conselho Monetário Nacional (CMN), que era o órgão irradiador das decisões. Então, o CMN saiu de cena e entrou o Copom, que hoje é o órgão poderoso da política monetária. Funciona, mantém a inflação sob controle e com um regime muito transparente. Ou seja, não é mais o Plano Real.
O Plano Real acabou?
O Plano Real foram os primeiros 5, 10 anos do padrão monetário. Agora estamos comemorando 30, mas o Plano Real ficou para trás. Ele teve uma primeira etapa, a da URV, e depois um segundo momento, quando levou a inflação de 120% para 1,5%, durante a fase âncora cambial e juro alto. Em 99, passamos o bastão para a política de metas. Naquele momento, a inflação já estava pequenininha e a experiência de inflação baixa já tinha desintoxicado o organismo econômico.
Na discussão entre dolarização e a manutenção de uma moeda própria, o senhor defendeu a moeda própria?
Sim, porque naquele momento isso era importante para nós. A oposição, crente de que a gente ia dolarizar a economia, estava pronta para atacar esse aspecto. Diziam que íamos entregar a moeda aos interesses estrangeiros. Era uma batalha em torno do simbólico. Mas havia outra fórmula para fazer a mesma coisa, que foi a URV e que deu muito certo.
O que faltou fazer para que o País tivesse um crescimento sustentável?
Muito francamente, não sei se consigo responder isso. Como médico especializado em hiperinflação, sei responder como combater esta doença. Sei o que faz bem à saúde genericamente, que são as reformas. Agora, a pessoa que cura doenças graves não é necessariamente a melhor para treinar um atleta. Queremos que o Brasil seja atleta olímpico, que esteja entre os que mais crescem no mundo. Então, sim, é mais ou menos isso, a agenda das reformas. Há especialistas nisso e a gente deve ouvi-los para fazer esses planos irem para frente.