Para Renan Quinalha, organizador do livro “Direitos LGBTI+ no Brasil”, precariedade da garantia de direitos à comunidade reflete falhas da democracia brasileira. Decisões judiciais são violadas em instâncias inferiores.Apesar de a mobilização do movimento LGBTI+ ter começado no Brasil nos anos 1970, foi apenas nos últimos 20 anos que direitos civis voltados a essa parcela da população passaram a ser oficialmente reconhecidos pelo Judiciário do país. Entre as conquistas estão o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (2013), criminalização da homofobia (2019), doação de sangue, adoção homoafetiva e licença-maternidade para mãe não-gestante.

Esses avanços foram reunidos em artigos de especialistas da área, que constam do livro Direitos LGBTI+ no Brasil: Novos rumos da proteção jurídica. Um dos organizadores da obra é o professor de Direito e escritor Renan Quinalha. Ele afirma que a obra propõe uma visão crítica sobre essa conjuntura, pois parte desses direitos civis foi assegurada via decisões judiciais, e não por meio de leis, o que fragiliza essas garantias.

Em 2023, por exemplo, a Câmara dos Deputados debateu um projeto de lei visando proibir o casamento homoafetivo. O livro descreve outras dificuldades nos tribunais e cartórios para fazer valer direitos como o reconhecimento do nome social e da identidade de gênero em documentos oficiais de pessoas trans. “Tem a comemoração, mas ainda há muito a avançar”, afirma Quinalha.

Outro problema é a violência. Diante da falta de dados oficiais, o Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil produziu um dossiê sobre o tema: em 2023, houve pelo menos 230 mortes violentas relacionadas à orientação sexual, o que corresponde a uma morte a cada 38 horas. Dessas, 184 foram assassinatos e 18 suicídios. Até abril de 2024, o grupo contabilizou mais 61 óbitos.

DW: Por que discutir direitos civis para os LGBTI+ no Brasil?

Renan Quinalha: Em relação a essa ideia de privilégios, eu acho que é muito limitada e não dá conta de entender o que são as reivindicações historicamente colocadas pelo movimento LGBTQIA+. O que se tem na sociedade é um regime de subcidadania dessa população tradicionalmente. Enquanto as pessoas heterossexuais podiam casar, e pessoas cisgênero tinham acesso pleno a sua identidade de gênero, pessoas LGBTQIA+ não tinham acesso a essas dimensões básicas asseguradas da sua orientação sexual e de liberdade de identidade.

Não podiam constituir famílias, não tinham possibilidade de estender o plano de saúde aos companheiros ou companheiras do mesmo sexo, não podiam ter proteção do estado em relação à violência que era feita. Esse regime de subcidadania impunha condições de vida a essa população de pré-igualdade formal das revoluções liberais, quando na luta pelos direitos civis o foco das revoluções liberais foi a tentativa de reduzir o poder do Estado e assegurar o direito à vida e à integridade.

Direitos civis são fundamentais, pois dizem respeito a elementos de cidadania que são basilares para a modernidade, como direito à vida e à integridade física, à privacidade, à intimidade, o direito a não ter uma intervenção do Estado sobre sua vida, é o direito a ter o acesso à justiça. Conceder direitos civis para a população LGBTQIA+ não retira os direitos civis da população heterossexual e cisgênera, não é reivindicação de privilégios de um regime de regulação de direitos especial, mas sim a extensão e a igualdade formal de todos os direitos entre todas as pessoas.

Como você avalia a conquista de direitos pela população LBGTI+ no Brasil? Há o que comemorar ou o cenário ainda é incipiente?

Tem algumas decisões já dos anos 1990, nas primeiras instâncias da justiça de reconhecimento, por exemplo, da extensão do plano de saúde e de direitos sucessórios, que foram precursoras das atuais, apesar de algumas terem sido reformadas por instâncias superiores. Mas, nos anos 2000 é que se conseguiu avançar, porque o movimento estava mais organizado e os espaços de poder estavam sendo mais ocupados, com a pulverização na sociedade de maior visibilidade da temática.

Tudo isso ajudou a fazer com que os direitos avançassem nesse período, até por uma judicialização que aconteceu com vários outros movimentos, e o movimento LGBTI+ aproveitou isso e foi ocupando espaços no Judiciário com advogados formados pelo movimento. As entidades do movimento, entendendo a importância de fazer isso, já que havia um bloqueio no Legislativo pela bancada fundamentalista religiosa, foi tendo esse avanço importante no Judiciário, assim como outros movimentos assim fizeram.

Boa parte das conquistas de direitos civis ocorreu ao longo dos últimos 20 anos. Quais foram as condições materiais e sociais que favoreceram esses avanços?

Há um processo de conquista e reconhecimento, muito recente ainda, dos direitos para a população LGBTI+ no Brasil. A gente tem a comemoração porque foi uma luta para reconhecer e fazer justiça a essas reivindicações, mas ainda há muito a avançar. Uma pessoa LGBTI+ não vive só do seu direito civil, ela não quer só sobreviver, não ser atacada em sua vida e integridade física, ela quer políticas públicas, direitos sociais e econômicos, culturais, cidadania, moradia, saúde educação, trabalho, renda, precisa de direitos em todas essas dimensões. Isso só uma lei pode fazer, com uma regulamentação mais detalhada. Uma decisão do Supremo é incapaz de fazer isso.

Parte dos direitos assegurados à comunidade LGBTI+ ocorreu no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Há mais precariedade na garantia desses direitos?

Há de fato um modo de reconhecimento que passa centralmente pelo sistema de justiça: STF, CNJ, ministérios públicos, defensorias públicas, e isso é muito frágil, e outros países já indicam isso. Os Estados Unidos têm um exemplo recente do direito ao aborto, que estava assegurado há meio século por uma decisão da Suprema Corte. E por conta das nomeações do [ex-presidente] Donald Trump, que mudaram a composição da Corte, o entendimento sobre essa matéria foi alterado e acabou levando a uma revisão e uma revogação desse direito.

Então isso fragiliza as reivindicações, e é preciso que se tenha uma proteção legislativa mais adequada como outros grupos têm no Brasil, a população negra tem uma lei antirracismo, as mulheres têm uma lei antiviolência de gênero, que é a Lei Maria da Penha, a população idosa tem um estatuto de proteção também, a gente tem o Estatuto da Criança e do Adolescente. Há esses diplomas para todos esses segmentos, mas não tem uma lei protetiva, um estatuto antidiscriminatório para a população LGBTI+, inclusive para pensar políticas públicas e marcos normativos que vão além do direito à vida e do direito da integridade física.

É fundamental que se assegure esses direitos por proteção legal, por isso que as eleições legislativas são tão fundamentais para a população LGBTI+, e têm sido um tema importante das paradas e outros espaços, com iniciativas como o Vote LGBT, que sistematizam candidaturas de mais pessoas LGBT pelo país. Isso é fundamental para que a gente consiga dar conta de uma regulação complexa, como tem que ser, para lidar com a vulnerabilização e com a marginalização da população de LGBTI+ nesse cenário.

Como o Brasil se insere no debate dos direitos civis para pessoas LGBTI+, na comparação com outros países?

De maneira geral, temos avançado. Em relação ao que está previsto e assegurado em outros países do mundo, estamos numa lista seleta de países, algo em torno de uma dezena, que reconhecem os direitos de cidadania da população LGBTI+, sobretudo os direitos civis de maneira ampla. Agora, isso não se converte na vida das pessoas LGBTI+, de fato, em reconhecimento de direitos e melhora. A violência é muito grande contra nossa população. É fundamental que se consiga avançar nesse aspecto de assegurar os direitos e traduzi-los, efetivá-los, tirar do papel.

Em mais 60 países no mundo há uma criminalização das pessoas do LGBTI+, ou seja, o sarrafo é muito baixo, o nível das discussões no mundo todo ainda está muito baixo. Estamos discutindo garantia do direito à vida à população e não criminalizar a existência das pessoas, deixar que existam no modo como elas são, como elas se percebem e se entendem. Tem uma trajetória muito longa para ser percorrida no mundo todo e no Brasil também, porque o que nós temos de garantia não é seguro, e não é certo que vai se manter e nem que vai ser efetivado: vai depender de mais mobilização e luta política da comunidade para que isso possa acontecer.