14/01/2004 - 8:00
História Natural dos Ricos
Autor: Richard Conniff
Tradução: Lúcia Ribeiro da Silva
Jorge Zahar Editor
Preço R$ 45
O genoma humano e o do chimpanzé são 98,4% idênticos. O jorna-
lista americano Richard Conniff, autor de reportagens premiadas
na National Geographic, resgatou a diferença entre os dois grupos,
de apenas 1,6%, para demonstrar que dentro dela há um outro gênero e espécie além do Homo sapiens. É o Homo sapiens pecuniosus. São seres humanos que se distinguem do restante da turba pela conta bancária e pelo comportamento arrogante, da dominação pelo dinheiro. É esse o mote do livro História Natural dos Ricos (Jorge Zahar Editor, R$ 45). Ele recupera, nas palavras do irônico Conniff, trinta milhões de anos de alpinismo social. Sua
espinha dorsal é fascinante: compara-se o comportamento dos ricaços ao dos animais e vice-versa.
Conniff mostra como o estilo dos bichos, na defesa dos mais fortes e mais bonitos, é muito parecido com o dos homens de carteiras robustas. Há paralelos hilariantes por precisão. Dondocas da alta sociedade adoram cumprimentar-se fazendo um muxoxo, entreabrindo os lábios com um som úmido, estalado, dizendo hmuã-hmuã no ar, junto às orelhas umas das outras. Os macacos cercopitecos do Parque Nacional Amboseli, no Quênia, utilizam esse mesmo gesto como sinal de apaziguamento, para desarmar os rivais.
Há, ao longo das 381 páginas, um duplo e divertido exercício: o zoomorfismo (considerar os seres humanos como se fossem animais) e o antropomorfismo (considerar os animais como se fossem seres humanos). O resultado é um mergulho no chamado darwinismo social ? um retorno ao tempo em que os tubarões da indústria americana e das finanças, no final do século XIX e início do XX, gostavam de usar o princípio da sobrevivência do mais apto como uma senha para se auto-enaltecer e destroçar os pobres. John D. Rockefeller Jr. costumava defender sua fortuna como ?o desdobramento de uma lei da natureza e de uma lei de Deus?. O livro é um pequeno tratado, espécie de Casa Grande & Senzala dos bilionários, ancorado numa idéia: mostrar que a história da riqueza sempre teve a ver com o modo como os de cima separam-se da ralé, e os recursos para alcançar esse objetivo. Um dos biólogos entrevistados por Conniff resume: ?As regras dos babuínos são as mesmas dos romances de Jane Austen: mantenha laços estreitos com seus parentes e procure aproximar-se dos animais de alta posição?. Ou então, nas palavras da escritora Dorothy Parker: ?Se você quiser saber o que Deus acha do dinheiro, olhe só para as pessoas a quem Ele o deu?.
O dinheiro, conclui Conniff, ajudou a fortalecer a subespécie argentária. ?Os ricos também morrem, é claro?, diz o autor. ?Só que não tão cedo.? Um estudo realizado no Reino Unido, em 1990, constatou que os donos de casa própria que têm um carro tendem a morrer mais moços do que os que têm dois, e assim sucessivamente, num ?gradiente contínuo?. É um fenômeno antigo. Na Florença do século XV, os genitores masculinos que fizeram os maiores investimentos no dote de suas filhas, num fundo chamado Monte delle doti, tiveram metade da mortalidade anual dos pais um pouco menos ricos, que fizeram os investimentos menores. A riqueza se traduz em longevidade porque, em última instância, as moedas compram a assistência médica de melhor qualidade. John D. Rockefeller legou um dos principais centros de pesquisas médicas do mundo, a Universidade Rockefeller, mas também reservou quatro quartos particulares, no primeiro hospital de 60 leitos, exclusivamente para sua família. Em outros termos: dinheiro compra felicidade, sim, embora passemos a vida tentando nos convencer heróica e dignamente do contrário.
?A tendência das classes mais altas a viver mais do que as outras, nas situações de crise, e a dos pobres a morrer em seu lugar pode persistir até mesmo nas complexas sociedades modernas?, diz Conniff. Recorda-se até hoje, em relatos emocionados, a postura de gente como Benjamin Guggenheim e John Jacob Astor no naufrágio do Titanic. Guggenheim recusou o colete salva-vidas e morreu de traje a rigor. Astor pôs num dos botes sua esposa grávida, então com 18 anos. Mas um passeio estatístico pelo Titanic, numa atividade genuinamente americana, aponta para outras direções. Numa análise da lista dos sobreviventes, descobre-se que 33% dos homens adultos da primeira classe sobreviveram ao naufrágio, em contraste com 16% dos que estavam na terceira (Leonardo di Caprio está aí para provar que a arte imita a vida). Ao todo, salvaram-se 62% das pessoas de primeira classe e apenas 25% das embarcadas na terceira. Os aristocratas saíram ilesos porque tinham pago cabines nos conveses superiores com acesso facilitado aos botes.
Foi um caso vitorioso do consumo ostensivo a serviço da sobrevivência darwiniana. O luxo salvou vidas. A ostentação da espécie, como forma de dominação, aparece até na filantropia. Os milionários dos EUA lutam para despontar nos primeiros postos das listas de benemerência. Claro que doar parte da riqueza é um ato bom em si e, a rigor, mal não faz (o Fome Zero é assim). Mas os ricaços transformaram esse bom hábito em exibicionismo, ainda que o esplêndido desperdício tenha gerado algumas das coisas mais belas da Terra, como salienta Conniff: o Nascimento de Vênus, de Botticelli, encomendado em nome de Lorenzo de Medici, e a Missa de Réquiem, de Mozart, encomendada pelo conde Walsegg zu Stuppach. O problema é que, na história da civilização, desde que o macaco desceu das árvores, é irrelevante se o comportamento de exibição faz ou não bem para o restante de nós. ?A história natural só está interessada em saber se faz bem ao indivíduo que se exibe, e, em caso afirmativo, como?, afirma Conniff.
Eis a chave: exibir-se não é para qualquer um. É preciso, para usar uma expressão querida nos salões lustrosos, ter o physique du rôle. Na evolução da espécie, o andar de pé fez toda diferença ? e os
ricos transformaram essa habilidade em vantagem competitiva. Trata-se, na definição do livro, da ?reputação pelo porte erecto?. As pessoas maiores tendem a conseguir o que querem, sobretudo dólares. Um levantamento feito nos EUA é acachapante: em 1980,
na época em que o homem americano tinha apenas 1,75 metro de altura, em média, mais da metade dos altos executivos das 500 empresas listadas pela revista Fortune tinha 1,83 metro ou mais (Antonio Ermírio de Moraes tem 1,87 metro).
É a sobrevivência da espécie, para retornar ao tema central de História Natural dos Ricos. Ela se dá até pelo olhar. Uma das maneiras de avaliar quem é dominante numa conversa, segundo Glenn Weisfeld, psicólogo da Universidade Wayne, é examinar a proporção entre ?olhar-e-falar e olhar-e-ouvir?. Os indivíduos dominadores mantêm o contato visual enquanto falam, mas desviam os olhos quando os subordinados dirigem-se a eles.
Um dos mais lendários registros do olhar de um dominador foi realizado pelo fotógrafo americano Edward Steichen em 1903, ao retratar o financista J.P. Morgan. Ele fita a câmera com ar felino. Nas próprias palavras de Steichen, era ?como olhar para o farol de um trem expresso vindo em nossa direção?. Durante anos, louvou-se essa imagem por mostrar Morgan com um punhal numa das mãos (na verdade é uma ilusão de ótica, uma interpretação fantasiosa dos dedos de Morgan que seguravam o braço da cadeira). O instantâneo foi tão preciso, no flagrante de um milionário, que o próprio Morgan tentou comprar a primeira cópia da foto, oferecendo US$ 5 mil ao colecionador Alfred Steiglitz. Hoje, cem anos depois daquele segundo mágico, a fotografia não perdeu sua força. ?O retrato ainda consegue reproduzir o momento de pânico no coração dos rivais em potencial que ele nunca teve o prazer de encontrar, digamos, cara a cara?, diz Conniff. É esse o Homo sapiens pecuniosus.