09/12/2022 - 19:58
A idosa de 82 anos resgatada após 27 anos de trabalho análogo à escravidão em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, contou que seu sonho é “ter uma casinha”. Ela, que passou a morar com um irmão, em Jardinópolis, cidade próxima, está sendo acompanhada por assistentes sociais, segundo a prefeitura.
Durante quase três décadas, ela trabalhou para um casal – uma médica e um empresário – sem receber salário e sem direito a férias ou descanso semanal, segundo denúncia do Ministério Público do Trabalho (MPT). Só de verbas da rescisão trabalhista, ela é credora de cerca de R$ 800 mil.
Conforme a auditora fiscal do Ministério do Trabalho e Previdência (MTP), Jamile Virginio, desde que foi resgatada da casa dos patrões, no dia 27 de outubro, e levada para morar com o irmão, a idosa tem se mostrado feliz com a nova vida.
“Estive com ela várias vezes e tudo o que ela quer é ter sua própria casinha, o que sempre foi seu sonho. Mesmo estando bem com o irmão e os sobrinhos, que são bem presentes, ela quer recuperar o que nunca teve: sua vida própria. Ela fala em ter a casa, receber amigos e fazer festas”, relatou.
A auditora conta que a idosa, negra, analfabeta e de origem muito humilde, sempre dependeu dos patrões para tudo e pouco saía de casa.
“Quando estava em Ribeirão Preto, ela ia à padaria ao lado da casa dos patrões toda manhã comprar pão para a família e, uma vez por semana, fazia a feira. Fora isso, era ficar em casa trabalhando. No máximo visitava o irmão, em Jardinópolis, mais ou menos uma vez por mês, quando a patroa dava o dinheiro da passagem.”
Jamile fez parte da equipe do MTP e do Ministério Público do Trabalho (MPT) que investigou o caso e fez o resgate da trabalhadora depois de receber uma denúncia anônima.
“Quando a equipe chegou, ela ficou muito assustada, demorou um pouco para entender a sua situação. No momento inicial, houve uma negação, até uma defesa da patroa. Agora, na casa do irmão, ela já está consciente de tudo o que passou, embora ainda esteja assustada com o assédio da imprensa”, disse.
Retenção salarial, negativa de férias e segregação doméstica ajudaram a configurar trabalho análogo à escravidão
Conforme a auditora, o primeiro cuidado da equipe foi verificar se a questão era apenas de sonegação dos direitos trabalhistas ou de trabalho análogo à escravidão.
“Observamos alguns indicadores de trabalho escravo, como a retenção salarial, a negativa de férias regulares e descanso semanal remunerado, a falta de registro em carteira e a própria segregação doméstica. A casa era antiga, mas ampla, com três quartos no piso superior que eram dos filhos do casal e que estão vazios. Mas a idosa passou a vida inteira em um quartinho no piso térreo, uma despensa da casa.”
Ainda segundo a profissional, a patroa disse, em sua defesa, que a idosa era tratada como alguém da família, que foi acolhida por caridade e não como empregada.
“A médica alegou que a idosa comia com ela, assistia TV com ela no mesmo sofá, e até me levou para ver a sala de TV, com um sofá amplo. Só que havia ali dez ou mais fotos da família em eventos sociais, casamentos, formaturas, algumas até antigas, e tive o cuidado de observar. Em nenhuma delas aparecia a senhora, que é negra e seria fácil de se observar entre as pessoas das fotos, todas brancas.”
Depois do resgate, a idosa passou a entender que foi privada não só do salário, mas também de ter vida social, amigos e namorados.
“É natural que uma pessoa simples, a quem não deram acesso à educação, privada de amizades, desenvolva uma relação de dependência e até de afeto com aqueles que lhe dão um teto, uma cama para dormir e comida. Mas quando perguntei a ela se a médica era sua amiga, ela disse que não, que era a sua patroa. Havia uma desigualdade, uma separação entre patroa e empregada, mas uma empregada sem qualquer direito trabalhista.”
O procurador do MPT, Henrique Lima Correia, disse que para o cálculo das verbas rescisórias foi estimado em 27 anos o tempo em que a idosa trabalhou para o casal.
“A médica falou que ela estava com eles há quase 30 anos, que ela chegou quando um dos filhos, que hoje tem 31, era muito pequeno. Com outros elementos, chegamos a esse tempo.”
Ele lembrou que, antes, a mulher trabalhou como empregada de outra família que era próxima do casal. “Ela foi transferida como um objeto e, pelos elementos colhidos, as condições eram iguais. Trabalhava em troca de comida e um lugar para dormir.”
Segundo ele, diante do valor apurado de dívidas trabalhistas, tudo o que o casal ofereceu foi um pagamento de R$ 5 mil. “Não houve uma tentativa de corrigir o erro e o que entendemos como crime, o trabalho análogo à escravidão, que será tratado em outro processo, pela Polícia Federal”, explicou.
O MPT entrou com ações em vara judicial de Ribeirão Preto para obter, além do pagamento da rescisão trabalhista, indenização por danos morais individuais, danos morais coletivos e dano existencial – quando se retira a possibilidade da pessoa ter vida plena.
A médica deve responder também por ter retido o cartão do benefício social que a idosa recebia do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), no valor de R$ 1,2 mil mensais. Esse dinheiro não era entregue integralmente à titular do benefício.
O procurador contou que, em 16 anos de atuação no MPT, não havia cuidado de um caso tão traumático e triste. “Peguei vários casos de trabalho escravo na roça, na construção civil, mas nada comparado a esse, em que a vida da pessoa é anulada para que ela sirva aos propósitos dos patrões. A reparação financeira é o mínimo que se deve àquela senhora.”
Denúncias estão em alta
Conforme a auditora Jamile, os casos de escravidão doméstica sempre existiram, mas o número de denúncias só aumentou depois que os casos mais emblemáticos foram expostos pela imprensa.
“Ainda tem gente que acha normal ter uma empregada que é ‘de casa, da família’, sem se dar conta da exploração. Depois que alguns casos ganharam espaço na mídia, como o de Madalena Gordiano (mulher negra resgatada em 2020, em Patos de Minas, após 38 anos de trabalho em regime de escravidão para a mesma família), o número de denúncias teve um aumento exponencial.”
Segundo ela, depois de um único registro em 2019, houve cinco em 2020, número que subiu para 82 em 2021 e que já chegou, até 26 de julho deste ano, em 104. Todas as denúncias são apuradas.
“Como regra, quando se observa que não é trabalho escravo, geralmente estamos diante de irregularidades trabalhistas gravíssimas.”
Casal sustenta inocência
O casal que empregava a idosa, a médica pediatra Maria de Fátima Nogueira Paixão e o empresário Hamilton Bernardo, tiveram o muro de sua casa, no bairro Ribeirânia, pichado com a palavra “escravista” nesta quinta-feira, 8.
A médica, que não falou com a reportagem, alegou no processo que pagava um salário mínimo por mês à mulher. Disse ainda que ela era tratada como alguém da família, recebendo acomodação, alimentação e cuidados médicos.
Ao Estadão, Bernardo disse que reside com a médica há três anos e que a idosa era considerada como se fosse um membro da família, não havendo nada que pudesse configurar trabalho análogo à escravidão.
“Houve precipitação da promotoria (do Trabalho), pois não tem nada de trabalho escravo. Os parentes vinham buscar para levá-la à casa deles. Quando nós viajávamos, ela ficava em casa, com total liberdade para dispor de tudo.”
Segundo ele, os advogados que farão a defesa do casal já pediram acesso aos autos dos processos e vão se pronunciar oportunamente.