19/10/2025 - 5:46
Grafismos da etnia kaingáng teriam sido incorporados ao tradicionalismo gaúcho sem o devido reconhecimento.O movimento tradicionalista gaúcho, caracterizado por costumes gastronômicos, artísticos e de vestimenta, é uma corrente cultural presente tanto no Rio Grande do Sul, quanto em outros estados do Sul do Brasil e em regiões da Argentina, Uruguai e Paraguai. Essa tradição, porém, teria se apropriado de símbolos indígenas.regiao sulaprorp
O tradicionalismo gaúcho se originou da miscigenação de culturas pré-existentes no território e de imigrantes. Um
estudo publicado em abril de 2025 analisou os símbolos da etnia kaingáng e sua relação com a cultura gaúcha. Os pesquisadores da Universidade de Caxias do Sul (UCS) identificaram a apropriação de diversos grafismos indígenas por esse movimento.
“O movimento tradicionalista há anos faz uso dos grafismos indígenas do Rio Grande do Sul, caracterizando não só o abafamento dessa cultura como a apropriação de seus manifestos”, destaca o estudo dos historiadores Francisco Ailton Santos e Juliane Petry Panozzo Cescon.
Os grafismos da etnia dizem respeito à ancestralidade e são símbolos de identidade e potência. Segundo uma das fundadoras do Instituto Kaingáng, Susana Kaingáng, a origem dos símbolos se dá a partir de uma jornada traçada por dois irmãos gêmeos kaingáng, que descem de uma montanha por lados opostos.
Um deles, o Kamé, saiu por um caminho pedregoso e fez muito esforço na sua caminhada. Assim ele desenvolveu músculos e força, além de se relacionar com animais diurnos. Já o Kairú, que desceu por uma planície, estabeleceu um contato mais longo com os animais da noite e com a lua e expõe traços mais delicados.
Dessa forma, os Kamé representam a força dos guerreiros kaingáng, enquanto os Kairú demonstram o lado espiritual. “Cada um deles tem a sua pintura, as suas habilidades e as suas relações com os seres da natureza”, afirma Susana.
Os Kamé são representados por linhas e pela marca aberta, enquanto os Kairú têm sua forma gráfica em círculos e são fechados. Esses símbolos guiam as linhagens familiares, pois orientam os casamentos, ou seja, uma pessoa que tem a origem Kamé deve casar-se com um Kairú.
Origem do artesanato
“O grafismo é a nossa marca de nascença”, afirma Lenice de Oliveira Kaingáng. Ela e o marido, Joceli Sales Kaingáng, são professores na Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Augusto Opé da Silva, que fica na Aldeia Kaingáng Três Soitas, na cidade de Santa Maria. A instituição é uma das poucas do Rio Grande do Sul que tem o ensino baseado na cultura indígena.
Joceli explica que os grafismos deram origem ao artesanato. “A nossa cultura sempre foi baseada na oralidade, mas, no final do século 20, houve a necessidade de formar a nossa identidade, mais especificamente a dos grupos Kamé e Kairú, por meio das pinturas. As marcas começaram no artesanato e viraram também pintura corporal.”
De acordo com a advogada e Diretora Executiva do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual, Fernanda Jófej Kaingáng, esses símbolos definem as relações sociais do seu povo. “Os grafismos são uma forma de transmitir informações do indivíduo kaingáng sobre quem é aquela pessoa, de qual família ela faz parte e qual posição social ela ocupa.”
Os grafismos do ponto de vista jurídico
Fernanda explica que as Expressões Culturais Tradicionais (ECTs), as quais englobam os grafismos, constam na legislação brasileira como parte do patrimônio cultural e têm uma série de instrumentos de proteção.
De acordo com a advogada, a violação dos direitos autorais ocorre com frequência nos adornos do tradicionalismo gaúcho, que teriam se apropriado de grafismos kaingáng que seriam utilizados de forma vazia para compor vestimentas sem valorizar a sua origem. Essa apropriação, segundo ela, constitui uma ofensa aos direitos autorais e à própria identidade do povo.
Fernanda argumenta que esse fenômeno é proveniente de uma histórica negação de direitos, que teve início com as práticas coloniais que nunca foram extintas do modo de viver brasileiro. Dessa forma, após a tomada de terras e exploração realizados de 1500 a 1822, período correspondente ao colonialismo brasileiro, passou-se a negar e expropriar a cultura dos povos indígenas.
No Brasil e internacionalmente, existem alguns órgãos de proteção às expressões culturais indígenas, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Entretanto, essas instituições declaram o patrimônio cultural kaingáng como do Brasil, o que, na visão de Fernanda, é equivocado, já que os povos indígenas já existiam antes do Brasil se consolidar como nação.
“É uma imposição de um marco temporal europeu e colonizador. Nós não aceitamos. Ele precisa ser reconhecido como patrimônio coletivo do nosso povo”, destaca a advogada.
Identidade emprestada
Joceli ainda tece uma crítica ao afirmar que a identidade gaúcha é toda construída em cima de outras culturas pré-existentes. Ele aponta que o tradicionalismo não tem uma identidade própria, já que os Centro de Tradições Gaúchas (CTGs) se formaram apenas a partir da década 1980. Dessa forma, para além dos grafismos kaingáng, eles se apropriaram de uma série de elementos de outras etnias para constituir sua cultura.
O professor relata que se sente frustrado com a falta de reconhecimento e o descaso que a cultura tradicionalista tem ao utilizar e monetizar itens cosmológicos sem dar a devida importância às simbologias. “Nós, indígenas kaingáng, também queremos aparecer na identidade rio-grandense”, acrescenta.
Em 2022, o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) vetou a utilização figuras geométricas contínuas na pilcha gaúcha – indumentária tradicionalista. “O fundamento da medida está ligado à preservação da identidade cultural gaúcha. Ainda que se reconheça que elementos da tecelagem andina exerceram influência sobre os usos e costumes do povo sul-rio-grandense, não há registro histórico que comprove o uso contínuo dessas padronagens na indumentária tradicional do Rio Grande do Sul”, afirma a diretora de cultura do MTG, Carla Thoen.
Tanto a sede do MTG quanto a unidade catarinense argumentam que esses padrões seriam andinos. De acordo com Carla, esses símbolos representam um processo de fusão de culturas por longo contato e, por isso, não são mais aceitos como parte do traje de eventos oficiais.
Apesar da proibição, o estudo da UCS encontrou mais de 30 itens que utilizavam grafismos indígenas numa loja de pilchas gauchescas em Caxias do Sul.