Sem estrutura para combater chamas, metade das Terras Indígenas do estado sofre com incêndios. Falta de água e comida agravam o cenário e indígenas denunciam abandono.Encurralados pelo fogo, indígenas do povo Xavante, em Mato Grosso, dizem que escaparam vivos por sorte. Quando as chamas se aproximaram das ocas e parecia não haver mais saída, um vento forte mudou a direção do incêndio. Todos sobreviveram.

A cena aconteceu há poucos dias na aldeia Wederã, na Terra Indígena (TI) Pimentel Barbosa. No local vivem os parentes de Mara Barreto Xavante, nomeada por seu povo para denunciar a situação e buscar ajuda.

“Não tem brigada para combater. Fomos quase queimados vivos e estamos abandonados à própria sorte”, diz Mara, representante da Associação Aliança dos Povos do Roncador, à DW.

Faz pelo menos 60 dias que os Xavante assistem à vegetação ser consumida. A TI Pimentel Barbosa é coberta pelo Cerrado, mas há registro de fogo em pelo menos 38 dos 80 territórios indígenas no estado, que também incluem a Floresta Amazônica e o Pantanal.

Já vulneráveis pela seca severa, muitas comunidades estão isoladas, com dificuldade para acessar alimentos e sem água potável. “Minha aldeia está bebendo água do córrego que está quase seco. Há muitos casos de disenteria”, afirma Mara.

Campeão do fogo

Segundo estado do país com maior número de territórios indígenas oficialmente reconhecidos, onde vivem 44 povos, Mato Grosso também é o maior exportador de soja.

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicam que o estado é o campeão em queimadas de setembro, com mais de 18 mil focos de calor.

O governador do estado, Mauro Mendes (União Brasil), chegou a insinuar em declarações à imprensa que os indígenas são os responsáveis pela gravidade dos incêndios em suas terras. A fala foi recebida com repúdio pelas lideranças.

“Responsabilizar os povos indígenas de Mato Grosso pelas queimadas é uma afronta à nossa dignidade, moral e principalmente à nossa história. Somos os verdadeiros guardiões da terra, e, se não estivéssemos aqui, toda a riqueza do nosso Cerrado, Pantanal

e Amazônia Legal já teria sido convertida em pasto de gado”, rebateu o cacique Paulo Cipassé Xavante por meio de nota, apoiada por todos os povos que vivem no estado.

A DW questionou o governo de Mato Grosso a respeito da declaração, mas não recebeu uma resposta até o fim desta reportagem.

Pedido de ajuda

Diante do cenário, a Defensoria Pública da União (DPU) pediu providências urgentes ao governo federal. Segundo uma análise prévia do órgão, não há equipes suficientes para enfrentar o fogo e as condições são precárias. Em agosto, o brigadista Uelliton Lopes dos Santos morreu enquanto tentava conter as chamas na TI Capoto Jarinã.

“A situação ainda é muito grave e nós entendemos que há necessidade de um esforço maior de mobilização”, afirma o defensor Renan Souto Mayor à DW.

A preocupação também é com os focos de incêndio próximos a áreas onde vivem indígenas isolados, como a TI Kawahiva do Rio Pardo, no município de Colniza. “O impacto nesses casos é ainda maior, porque não é possível falar com eles, avisar que está pegando fogo”, diz o defensor público.

Em resposta à DPU, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) informou que, dentre as medidas adotadas, está a recomposição de seu orçamento para contratar 3,9 mil brigadistas, aeronaves, combustível e equipamentos para combater os incêndios. Numa ação conjunta com outros ministérios, a pasta busca mais dinheiro para prevenir o fogo, fiscalizar e reprimir crimes ambientais.

“Considerando a situação de emergência climática que o Brasil enfrenta, o MMA também tem trabalhado com medidas igualmente emergenciais e extraordinárias e na implementação do Plano de Emergência Climática com elevado risco de incêndios florestais no Pantanal e Amazônia”, diz um trecho da resposta ao oficio da DPU.

O início do fogo é, majoritariamente, provocado por ação humana. Em áreas recentemente desmatadas, as chamas aparecem na etapa seguinte do processo de retirada da floresta, pontua Vinicius Silgueiro, coordenador de inteligência territorial do Instituto Centro de Vida (ICV), baseado em Mato Grosso.

“Colniza, por exemplo, que lidera o ranking de desmatamento ilegal, também está entre os municípios com maior área queimada neste ano”, diz Silgueiro sobre a associação dos fenômenos.

Quando o fogo é ateado diretamente na floresta, ele causa uma degradação que facilita a retirada das árvores. “As chamas deixam a mata mais frágil para a abertura total da área vir depois”, complementa, lembrando que a seca extrema e falta de umidade no solo facilitam a propagação dos incêndios.

Ainda em Colniza, a Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt, unidade de conservação estadual, é marcada pelo desmatamento, grilagem de terras e exploração ilegal. Em julho, a Força Nacional foi acionada para proteger indígenas e servidores da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) ameaçados por essas atividades clandestinas. Segundo o monitoramento do Inpe, focos de calor consomem pontos da Guariba-Roosevelt e propriedades privadas do entorno.

A crise pós-fogo

Em vários lugares do território Xavante ainda é possível avistar o fogo destruindo o Cerrado. As chamas deixaram muita destruição por onde passaram, queimaram casas e a esperança dos indígenas é que chuva logo caia do céu.

Eliane Xunakalo, da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso, Fepoimt, diz que há territórios devastados e muita preocupação com a segurança alimentar, já que plantios inteiros foram carbonizados.

“Se a gente for olhar o setor agropecuário, eles terão subsídios para recomeçar ou passar por este momento. E nós? O que teremos de fato? O nos será oferecido para o enfrentamento da seca com nosso território queimado?”, questiona em conversa com a DW, listando a necessidade de sementes, insumos, comida, água e ferramentas.