A fiscalização do plano de recuperação judicial de uma empresa no Brasil, a rigor, deveria durar dois anos. Este é o prazo máximo previsto no artigo 61 da Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falências – a LRF). Mas na prática o limite temporal é ignorado. O país acumula casos emblemáticos de empresas com processos se arrastando por anos e até décadas. A redução de tempo é alvo de projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, cuja aprovação empacou no Senado Federal. Enquanto isso, lances duvidosos do Judiciário dedicado ao Direito Falimentar levantam suspeitas.

A legislação foi regulamentada no início de 2005 para recuperar a operadora de telefonia Oi, que à época acumulava dívida estimada em R$ 65 bilhões. A primeira fase de recuperação da empresa durou até 2022, ou seja, 17 anos, com o pagamento de R$ 25 bilhões em débitos. A companhia entrou com um segundo pedido de recuperação judicial em 2023, visando resolver passivo devedor no valor de R$ 44,3 bilhões.

A demora de centenas de processos encalacrados em varas judiciais por anos sem resolução, seja para recuperar empresas ou decretar a falência daquelas sem salvação, envolve jogadas suspeitas entre juízes, administradores judiciais, escritórios de advocacia e perícia especializados. Ao longo dos quase 20 anos de vigência, a LRF acumula diversas denúncias e investigações.

Um dos processos mais longos conhecidos e comprovadamente irregular envolve a mineira Construtora Marialva Ltda., que se arrasta há quase 30 anos. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) chegou a afastar o juiz responsável, após uma investigação indicar o desvio de R$ 50 milhões da massa falida da empresa ao longo de anos em esquema comandado pelo magistrado. O juiz, segundo indicou o tribunal, nomeava advogados como testa de ferro para ele próprio fazer a administração ilegal.

Outro caso famoso envolve a falência do Banco Santos, processo que se arrasta desde 2005. Agora, os herdeiros do espólio do falecido banqueiro Edmar Cid Ferreira, morto em janeiro, tentam suspender o administrador judicial, acusado de desvios e investigado pela Polícia Civil de São Paulo.

Mas outros processos emblemáticos se arrastam por anos, sob suspeita de ilicitudes e lances polêmicos. Entre casos longevos estão o da Usina Albertina (Sertãozinho-SP), iniciado em 2008; Usina Floralco, pertencente às massas falidas da Floralco Açúcar e Álcool e da GAM Empreendimentos e Participações, que começou em 2010; Usina São Fernando (Dourados-MS), desde 2013; e a recuperação judicial da Viação Itapemirim, começada em 2016 e que soma questionamentos no Tribunal de Justiça paulista (TJ-SP).

A companhia de ônibus interestaduais acumula cerca de R$ 2,4 bilhões em dívidas. A atual arrendatária da massa falida da Itapemirim, iniciada em 2022, é questionada por credores e a área técnica da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que aponta irregularidade no uso de autorizações de rotas de ônibus como parte da massa arrendada. O caso está sob análise do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que em junho revisou decisão do ano passado para autorizar a liquidação de bens para quitar parte da dívida.

Congresso mira redução

Existe a possibilidade do tempo real para processos de recuperação judicial e falências serem menores. Este é um dos objetivos do projeto de lei 3/2024, elaborado pelo Ministério da Fazenda.

De acordo com o secretário de Reformas Econômicas do ministério, Marcos Pinto, o tempo médio de recuperação judicial no país é de 11 anos. “Com as mudanças para modernizar o processo de falência e eliminar os gargalos, esperamos reduzir os prazos pela metade, aumentar os níveis de recuperação e reduzir o custo do crédito”, afirmou no lançamento do projeto.

O texto elaborado pelo Executivo já foi aprovado pela Câmara dos Deputados, após mudanças negociadas entre governo e parlamentares. O projeto aguarda deliberação de comissão e relator no Senado. A tendência é de que a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) assuma a proposta legislativa, mas o tema deve ficar para 2025.

Legislação questionada
Os processos têm movimentado bancas jurídicas com pedidos inusitados de Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ), mecanismo que permite a terceiros questionar integrantes da pessoa jurídica. A brecha pode ser usada para buscar bens pessoais de sócio ou administrador da empresa em recuperação judicial para cobrir dívidas.

O Código de Processo Civil (CPC) permite IDPJ entre os artigos 134 e 137, mas o Judiciário já identificou controversas e abusos na aplicação das regras por via monocrática de relatores de processos em tribunais estaduais. O STJ interviu por meio de dois recursos especiais para coibir a prática. Em 2021, a Corte vetou o redirecionamento de execução fiscal para terceiros fora do previsto do Código Tributário Nacional, reduzindo as hipóteses para instaurar IDPJs.

Mais recentemente, a Corte Superior reafirmou a nova redação dada ao art. 50 do Código Civil, especialmente no que se refere à extensão dos efeitos da desconsideração e, consequentemente, da falência, a empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico.

Ao julgar o Recurso Especial nº 1.897.356, a Ministra Maria Isabel Galotti faz a seguinte ponderação ao analisar a questão: “em síntese, para ensejar a desconsideração da personalidade e a extensão da falência, seria necessário demonstrar quais medidas ou ingerências, em concreto, foram capazes de transferir recursos de uma empresa para outra, ou demonstrar o desvio da finalidade natural da empresa prejudicada vem chancelada por nenhum elemento de prova citado no acórdão recorrido.”

A ministra ainda vai além destacando que “a confusão patrimonial como requisito da desconsideração de personalidade jurídica, medida excepcionalíssima no direito privado, deve ser inequivocamente demonstrada por meio de elementos objetivos (…)”. A avaliação deixa evidente o atual posicionamento que vem sendo adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, em privilegiar o princípio da autonomia patrimonial e o caráter excepcionalíssimo da aplicação da teoria da desconsideração.

O tema também foi pacificado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) em acórdão de 2021, revisado no início deste ano. Foi definido que a responsabilização de terceiros, quando o sócio ou o administrador agir comprovadamente de má fé levando a recuperação judicial a prejuízo, deve ocorrer com base na redação do artigo 50 do CPC ajustada pela Lei nº 13.874, de 2019.

O TJDF estabeleceu que a IDPJ precisa ser motivada “pelo ato intencional dos sócios de fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica; a confusão patrimonial, pela inexistência de separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus sócios”, como registrou no acórdão.

Na decisão, o tribunal federal ressaltou posição do STJ para IDPJs não poder ser motivada pela “falta de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo”, ou na intepretação do TJDF “não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica”.

O advogado Ricardo Castro, do escritório L.O. Baptista, observa que o mecanismo de responsabilização de sócios e administradores é mais usado em processo de falência, mas pode ser usado em investigações de fraudes em recuperações em curso para puni-los pela dívida gerada. É o caso, por exemplo, da Recuperação Judicial das Americanas, em que instituições financeiras buscam a responsabilização de sócios/acionistas com poder de administração pelas dívidas da empresa, em decorrência da notória fraude ocorrida no âmbito da companhia”, afirma.