Sobraram menos de 200 línguas indígenas das mais de mil faladas há 500 anos. Centro de documentação do Museu da Língua Portuguesa é um dos projetos em curso para estudar idiomas originários.Da paçoca ao Vale do Anhangabaú, passando por pirarucu, samambaia e Taquarituba: das mais de mil línguas indígenas que eram faladas no território brasileiro há 500 anos, é provável que você conheça apenas palavras soltas, incorporadas ao vocabulário do português brasileiro.

Mas pipocam pelo país iniciativas recentes que querem resgatar e valorizar esses idiomas – muitos deles já desaparecidos, outros em risco de extinção.

Neste mês de junho, o Museu da Língua Portuguesa (MLP) e o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP) inauguraram um centro de documentação para pesquisa, preservação e difusão desses saberes originários.

O esforço se soma a outras iniciativas recentes de instituições de renome do Brasil. A USP, por exemplo, já tem um grupo de estudos em seu departamento de linguística dedicado ao tema e desde 2023 realiza, em parceria com a empresa IBM, um trabalho que usa a tecnologia para estudar idiomas originários do Brasil.

“Preservar uma língua indígena é preservar o modo de viver de um povo. As línguas indígenas são como gotas que podem curar a terra”, afirma a linguista Altaci Kokama, professora na UnB, coordenadora de promoção de políticas linguísticas do Ministério dos Povos Indígenas e presidente da força-tarefa global para a década internacional das línguas indígenas da Unesco. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura determinou o foco em línguas originárias entre 2022 e 2032.

Um museu é suficiente para revitalizar uma língua?

O projeto do MLP, por exemplo, recebeu investimentos de R$ 14,5 milhões, por meio de financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O Centro de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas terá bolsas para pesquisadores e pretende criar um acervo digital para a conservação museológica desse legado.

Trabalho não vai faltar. Cerca de 20% das línguas ainda praticadas no Brasil jamais foram estudadas, conforme estima o MLP.

Mas nem todos são otimistas quanto a esse trabalho. “Não sei se um museu é suficiente para manter uma língua. Museu é coisa normalmente de preservar fragmentos do passado e não manutenção do presente e nem garantia de futuro”, comenta o escritor e ambientalista indígena Kaká Werá, um dos autores da coleção Vozes Originárias, da editora PeraBook.

Faltam línguas indígenas oficiais no Brasil

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 274 línguas indígenas faladas por pessoas que pertencem a 305 etnias diferentes no Brasil contemporâneo. Para linguistas, contudo, o número pode ser menor – porque os critérios que diferem uma nova língua de um dialeto variam conforme a abordagem.

Num artigo publicado em 1993 e disponibilizado no portal Delta (Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada), um dos maiores especialistas no assunto, o linguista Aryon Dall’lgna Rodrigues (1925-2014), calculava serem 180 à época. A linguista Luciana Storto, coordenadora do projeto recém-criado e professora na USP, diz que há hoje 154 línguas indígenas faladas no país.

Porém, quando os portugueses chegaram ao território, 525 anos atrás, acredita-se que nessa área eram faladas de 1000 a 1.500 idiomas diferentes – segundo estudo realizado por Rodrigues, eram 1.175. Eram idiomas de quatro grandes troncos linguísticos: aruak, karib, tupi e macro-jê.

Aos poucos, a língua do colonizador foi sendo imposta. Mas especialistas acreditam que o Brasil poderia ser ainda hoje oficialmente uma nação com mais de um idioma reconhecido – os latino-americanos Paraguai, Peru e Bolívia são exemplos de países que têm línguas indígenas com status de oficiais.

“Falávamos tupi até o século 18”, ressalta o historiador e antropólogo Giovani José da Silva, professor na Universidade Federal do Amapá (Unifap). Conforme ele explica, o tupi pertence à família linguística do tupi-guarani que, por sua vez, é do tronco também chamado tupi. O guarani moderno – falado no Paraguai – compartilha grandes semelhanças fonológicas e gramaticais com o tupi.

Como a herança linguística indígena desapareceu?

Estudada e aprendida pelos padres jesuítas que se encarregaram de missões catequéticas no Brasil colonial, o idioma acabou se tornando uma espécie de língua franca no território, sendo a maneira como os europeus conseguiam se comunicar com os nativos e, assim, estabelecer as relações econômicas exploratórias.

É por isso que tantas palavras do vocabulário do português brasileiro e, claro, da toponímia de cidades do país, têm origem indígena.

O problema foi que essa característica acabou dando um poder impensado para a Igreja. Afinal, em tempos sem Google Translator, quem dominava a língua do outro conseguia influenciá-lo. A Coroa Portuguesa passou a se incomodar.

Foi quando entrou em cena o português Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), mais conhecido como Marquês de Pombal. Secretário de Estado do reino de Portugal entre 1756 e 1777, ele lançou mão da cartilha iluminista para reduzir a influência da religião sobre a máquina pública. Como explica Silva, a ideia era “secularizar” a administração colonial.

A arapuca era para os jesuítas, mas na mesma cumbuca estavam os indígenas e todos os europeus e seus descendentes que, àquela altura, já falavam mais o tupi e suas variantes do que a língua derivada do latim.

Segundo Silva, a proibição fez com que gradualmente as línguas indígenas fossem desaparecendo do falar cotidiano, sobretudo a partir do século 19.

“As línguas indígenas passaram a ser vistas como obstáculos ao progresso, como vestígios de um passado bárbaro, incivilizado”, contextualiza o historiador Carlos Trubiliano, professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e ex-assistente técnico na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Risco de extinção

Baseado em suas pesquisas de campo, Silva cita algumas línguas indígenas que correm risco de desaparecer. “Conheci cinco falantes do guató. Não sei quantos estão vivos hoje”, exemplifica. “Ofayé tinha apenas um falante, alguém que não tinha com quem falar.”

“Eu diria que todas as línguas indígenas do Brasil estão em risco de extinção, pois elas são faladas por comunidades de falantes que vivem em terras indígenas e, com as mudanças demográficas para as cidades, as comunidades de fala podem se pulverizar”, teme Storto.

“As línguas que estão em maior perigo são aquelas em que as crianças não estão mais adquirindo a língua indígena como sua primeira língua. Há também as línguas com um baixo número de falantes, que podem deixar de ser faladas em pouco tempo”, alerta.

A Unesco diz que a cada dez idiomas considerados indígenas no mundo hoje quatro correm o risco de desaparecer. Para os especialistas e para os próprios indígenas, o correto é dizer que as línguas que não estão sendo praticadas precisam ser “revitalizadas” — eles evitam termos como “recuperadas” ou “resgatadas”.

“De modo geral, uma língua é considerada ameaçada quando tem poucos falantes, quando é transmitida apenas entre pessoas idosas, quando não é utilizada no cotidiano da comunidade ou quando sofre forte pressão de línguas dominantes, como, no nosso caso, do português”, explica o historiador Trubiliano.

Segundo estudos realizados pelo linguista Wilmar D’Angelis, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), metade das línguas indígenas do Brasil contam com menos de 500 falantes, cerca de 40 línguas têm menos de 100 falantes e quase 30 têm menos de 20 falantes. “Em outras palavras, existe no país um número grande de línguas em perigo de extinção”, alerta.