09/04/2003 - 7:00
Até semanas atrás, os Estados Unidos sabiam quem eram
seus inimigos. Usavam surrados uniformes militares e portavam velhos fuzis russos Kalashnikov. Podiam ser do exército
iraquiano ou da Guarda Republicana de Saddam Hussein. Mas
depois que alguns soldados americanos foram alvo de homens-bomba, o inimigo perdeu a face visível. Ele podia estar em qualquer rosto ? mesmo nas mulheres, nas crianças ou nos idosos. E por não saberem mais quem matar, as tropas de George W. Bush e Tony Blair promoveram um massacre. Civis foram mortos e mutilados nos mais cruéis ataques de uma guerra insana. Caiu assim o véu que encobria as reais intenções da máquina militar anglo-americana que se auto-intitula ?coalizão?. Na terça-feira 1, um hospital foi atacado no povoado rural de Hilla, despedaçando os corpos de 33 mulheres e crianças. Outras 310 vítimas ficaram feridas. Um dia depois, o alvo foi uma maternidade em Bagdá, onde 25 grávidas foram atingidas. Nos arredores de Nassiriah, um ataque de helicóptero matou 15 pessoas da mesma família, que tentavam fugir dos combates. ?Por quem devo chorar??, indagava o sobrevivente Razek al-Khajaf, debruçado sobre os caixões de seus seis filhos ? um deles, recém-nascido. Foi tão brutal que a Anistia Internacional decidiu pedir uma investigação sobre os massacres. Até uma semana, Bush e Blair buscavam a rendição de Saddam Hussein. Isso já não lhes basta. Irão até o fim. Querem que todo o povo se renda. Vivo ou morto. Não há mais palavras para descrever o que se passa nas frentes de batalha do deserto. É indecente!
Antes dos últimos massacres anglo-americanos, que ganharam tons de genocídio, ainda se debatia como seria a reconstrução do Iraque ? que empresas (americanas) ganhariam os contratos, qual seria a produção de petróleo no pós-guerra, que regime político seria instalado em Bagdá. Essas discussões econômicas ou políticas perderam totalmente o sentido. Reconstruir o quê? Para quem? Restarão iraquianos? E mesmo nos Estados Unidos, onde a
máquina de propaganda a serviço da guerra busca desesperadamente cenas de civis iraquianos festejando a chegada de soldados americanos, o assassinato brutal de inocentes mexeu com a opinião pública. ?Se essas imagens se tornarem rotineiras, a guerra política será perdida antes mesmo da vitória militar?, alertou, em editorial, o diário The New York Times. Do outro lado do Atlântico, em Londres, o governo reconheceu que a imagem das tropas britânicas não é exatamente a de uma força ?libertadora? do povo iraquiano. ?Por ora, seremos vistos como vilões?, admitiu David Blunkett, secretário do governo de Tony Blair.
Os soldados que matam doentes em hospitais, mutilam idosos em seus lares e despedaçam corpos de crianças nas praças públicas cumprem apenas mais uma etapa, rumo ao alvo Saddam. Combater em Bagdá, uma metrópole de 5 milhões de habitantes, casa a casa, sob um calor que pode chegar a 50 graus, é o cenário mais temido, pois, em tais condições, a disparidade de forças diminui. Mas como Saddam e suas tropas teimaram em não se render e em não entregar todo um país aos invasores, os ataques às populações civis fizeram, sim, parte da estratégia do secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld. Haverá quem diga que foram erros, que são ?danos colaterais?, mas, em qualquer guerra, matar inocentes é um último recurso para tentar desnortear o inimigo e levá-lo à capitulação. Não há mais palácios, instalações militares ou centros de comunicação para se derrubar. Onde mais as bombas poderiam cair? Na última semana, em que se completou a destruição de toda a infra-estrutura iraquiana, o país foi atacado por várias frentes ? ao sul, em Basra, ao norte, em Mosul e Kirkuk, e nos arredores da capital. Além disso, como todo iraquiano passou a ser visto como um ?terrorista em potencial?, os americanos buscaram legitimar as mortes. ?Onde sentirmos que há ameaça, atiraremos?, avisou Jim Wilkinson, porta-voz do general Tommy Franks.
A guerra de George W. Bush e Tony Blair ? nunca é demais lembrar ? desrespeitou a vontade da comunidade internacional e não apresentou evidências de que o Iraque, de fato, possui armas de destruição em massa. Onde está o arsenal químico e biológico? No mundo unilateral de Bush e Blair, em que vale a lei do mais forte, os fortes já se julgaram e se inocentaram. Os EUA não reconhecem o Tribunal Penal Internacional. Blair não aceitaria ser julgado numa corte como a de Haia, da Holanda. Mas a tragédia humanitária no Iraque causa tanto sofrimento que cabe uma indagação. Se a carnificina fosse promovida por um ditador africano, sérvio ou árabe, não haveria vozes na América clamando por penas aos criminosos de guerra? Não se pediria um tribunal como o de Nuremberg, que julgou e condenou nazistas?