19/08/2018 - 8:42
Nos últimos anos, o Brasil aumentou três vezes o valor investido por aluno no ensino básico e deu importância a políticas como avaliações, base curricular e financiamento de estudantes em faculdades. No entanto, pouco olhou para a sala de aula. E os resultados da aprendizagem das crianças mostram que se caminha a passos lentos para chegar perto dos países que mudaram o rumo da sua educação. Ao olhar para as melhores experiências no mundo, especialistas garantem que só haverá evolução se o próximo governo investir fortemente no professor.
As mudanças em várias nações vêm da constatação de que a qualidade do docente é fator determinante para o ganho de aprendizagem do aluno. Um estudo recente, que tem entre os autores o economista da Universidade de Stanford Raj Chetty, analisou 2,5 milhões de crianças durante 20 anos nos Estados Unidos. Os dados revelaram que estudantes de um bom professor têm maior probabilidade de iniciar o ensino superior, entrar em faculdades de melhor qualidade, receber maiores salários e poupar mais para aposentadoria.
Outras pesquisas anteriores já indicavam que crianças que tiveram aulas com bons profissionais obtiveram um ganho médio de um ano de escolaridade. Melhores professores são particularmente importantes para crianças com perfil socioeconômico baixo. A atuação deles por anos seguidos pode mudar o destino de um aluno pobre e eliminar a distância de aprendizagem entre ele e um estudante de classe alta. Segundo pesquisas, um professor de qualidade tem o domínio do conteúdo que ensina e uma boa gestão de sala de aula, com estratégias que mantêm alunos envolvidos e técnicas de ensino eficazes.
“Não adianta nada discutir Base Curricular se a gente não conseguir resolver o problema do magistério”, diz a consultora e ex-secretária de Educação do Rio Grande do Sul Mariza Abreu. “Só podemos ter alguma esperança de que a educação vai melhorar quando a agenda do professor se tornar prioritária. É preciso uma mudança estrutural”, aponta o diretor de políticas educacionais do Movimento Todos pela Educação, Olavo Nogueira Filho.
Os professores apareceram na pauta do governo Michel Temer no começo deste ano, com um investimento de R$ 1 bilhão em 190 mil vagas para bolsas de estágios, residência pedagógica e formação. Mas o Brasil tem hoje 1,5 milhão de alunos em cursos de Educação e 2,1 milhões de docentes nas escolas. Outra comparação é o valor investido em outras políticas, como o Financiamento Estudantil (Fies), que beneficia alunos de universidades privadas. Em 2017, foram R$ 19 bilhões, 18 vezes mais que no programa para docentes – que ainda está com as bolsas ameaçadas por causa de cortes no orçamento.
O MEC, nos últimos anos, colocou esforços também para aprovar a Base Nacional Comum Curricular, que indica objetivos de aprendizagem para cada nível de ensino. As ideias tanto da Base quanto da reforma do ensino médio, que virou lei em 2017, preveem uma educação moderna e interdisciplinar. Algo muito distante da formação atual do professor.
Exemplos de países que deram saltos recentes, como Finlândia, Cingapura e Estônia, mostram que focar as políticas no professor significa agir em várias frentes. É preciso selecionar os melhores alunos do ensino médio para estudar Pedagogia, formar o professor com qualidade, ensinar práticas de ensino. Eles também fecharam cursos ruins e passaram a avaliar e orientar os que já estão trabalhando nas escolas – além de aumentar salários.
Uma experiência bem sucedidas são os programas de observação de sala de aula, que analisam práticas didáticas, atenção do aluno, materiais. Um projeto da Fundação Lemann em escolas do Ceará ensinou coordenadores a fazerem um trabalho de coaching dos professores. Depois disso, aumentou o tempo usado pelos docentes para conteúdos e atividades – eles perdiam horas com chamadas e indisciplina. Entre as técnicas aprendidas estavam a de ajudar o estudante a chegar sozinho à resposta certa, demonstrar altas expectativas para todos e avaliar constantemente.
Salários
Paga-se ainda pouco ao profissional no Brasil – metade dos Estados sequer respeita o piso salarial estipulado por lei, de R$ 2.455,35. A média entre os países desenvolvidos é de US$ 100 mil (cerca de R$ 391 mil) por ano, ou U$ 8 mil (R$ 31,2 mil) por mês. Mas nações que só pagam mais – e não promovem outras políticas de valorização – não têm melhores resultados. E, apesar do professor não ganhar bem, gasta-se muito com salário: 70% do dinheiro da educação no País.
O especialista em financiamento Binho Marques diz que o problema é a carreira do professor. “Há carreiras muito caras e longas, outras cheias de penduricalhos. Fora gente que recebe pela educação porque é amigo do vereador.” No País, docentes passam a ganhar mais quando fazem cursos de especialização – independentemente da qualidade – ou por tempo de serviço. Não há diferença de salário entre os melhores e os piores profissionais.
Mesmo assim, especialistas defendem o aumento de salário para tornar mais atrativa a profissão. Hoje, professores com ensino superior ganham 50% menos que outros profissionais. “Se o Brasil quer dar um salto nos próximos anos, não pode continuar pegando os piores alunos do ensino médio para ensinar as novas gerações”, diz o diretor executivo da Fundação Lemann, Denis Mizne. No Enem, 70% dos estudantes que entram em Pedagogia têm nota abaixo da média.
‘Meu objetivo é sair o mais rápido possível da carreira’
São 8 horas de uma manhã fria na sala do 3.º ano de uma escola municipal na zona norte de São Paulo. As 29 crianças de 7 e 8 anos estão agrupadas em duplas para copiar um texto sobre piolhos de cobra que a professora escreve na lousa. Sentam-se juntas não para que uma colabore com a outra na tarefa necessariamente, mas porque não há livros didáticos para todas. Ouve-se um estrondo e a professora para. Paula*, sentada sozinha no canto esquerdo da sala, havia se levantado e jogado violentamente sua mochila no chão.
“Ela é autista”, explica a estagiária Marta*, que cursa Pedagogia e tem a função de cuidar das crianças “laudadas” da sala. Laudadas é o termo usado na rede para as que passaram por médicos e receberam laudos indicando deficiência ou transtorno. A legislação atual exige que as escolas regulares incluam todos os alunos com necessidades educacionais especiais.
É raro encontrar sala na rede pública sem uma criança com esse perfil. Paula* joga a mochila mais cinco vezes. O barulho não é suficiente para acordar Pedro*, que dorme desde o início do turno com a cabecinha deitada na carteira.
A lousa já está tomada de texto. A professora Joana*, de 34 anos, escreve e lê em voz alta duas perguntas sobre o tema. Mas muitos ainda copiam o primeiro parágrafo. Há também crianças não alfabetizadas na sala, então a professora dá a elas uma atividade especial, um papelzinho com letras. E segue em frente. “Acelera, gente.” O vento frio entra pelas janelas abertas, as cortinas de pano marrom voam insistentemente para o rosto de três meninos.
Paula* agora folheia um livro com páginas rasgadas. Ao perceber que a estagiária saiu da sala, ela tira a roupa. Em segundos, já está correndo só de calcinha cor de rosa. “A gente não tem preparo para esses casos. No começo eu ficava muito nervosa e agora até me acostumei. Mas os pais não ajudam, a mãe dela nunca veio conversar comigo”, conta a professora.
É hora da atividade de matemática. Joana* distribui papéis com contas, metade, dobro, triplo. A dupla perto da janela se olha sem saber como começar. “Metade é o que mesmo?”, pergunta uma das meninas. “É quando se divide o número por dois”, diz a professora, voz alta e firme. Ela não consegue notar a dificuldade persistente dos que estão no fundo. Muitos são filhos de imigrantes bolivianos. Toca o sinal, recreio.
“Você aprende a dar aula entrando na sala e fazendo”, diz ela. “Na faculdade não aprendemos isso. Cada uma tem sua metodologia, própria ou copiada de alguma professora que conheceu.” Joana* e nenhuma outra colega entrevistada têm ideia do que diz a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), aprovada no fim de 2017.
Enquanto as crianças correm e gritam na quadra, as professoras comem frutas na sala destinada a elas. Sabrina*, de 38 anos, reclama do “acúmulo”. É como chamam a jornada dupla de trabalho. Como 40% dos professores do Brasil, ela e Joana* dão aulas em mais de uma escola, numa rotina de 11 horas de trabalho.
O almoço é uma marmita esquentada no micro-ondas e dura 20 minutos. Quase não sobra tempo para corrigir provas, preparar aulas. “Não dá para sobreviver se tiver um emprego só”, diz Joana*. Juntos, seus salários somam R$ 4 mil. “A sociedade não respeita o professor. Eu queria mudar de vida, mas só sei fazer isso”, lamenta Sabrina*.
No andar de cima, Mariana*, de 34 anos, tenta controlar a gritaria no 5.º ano. Poucos se esforçam para fazer uma atividade: uma menina escreve mensagem no celular, meninos andam de um lado para o outro. A professora oficial faltou – algo frequente, diz a substituta. “Nessa idade a questão social já transborda.”
Acaba o turno da manhã e Joana* vai para uma escola estadual. É dia de conselho de classe, atividade bimestral em que a coordenadora orienta as professoras. “O João* é difícil, empurra, bate. O Mario* não se concentra”, vai relatando Julia*, docente do 1.º ano. A coordenadora diz que vai chamar a mãe deles para conversar. Outras dez professoras esperam sua vez. Uma delas almoça na sala.
Adriana* conta que chorou durante uma semana na primeira vez que entrou numa sala de 9.º ano, com adolescentes de 14, 15 anos. “As crianças pequenas até gostam de você, te abraçam. Mas as grandes dançam funk em cima da carteira.” A colega ao lado afirma que tem vergonha de dizer que é professora.
“Meu objetivo na carreira é sair o mais rápido possível da sala de aula”, afirma Julia*, com pressa. “Os pais não te respeitam, se você quer conversar sobre um problema do filho, eles acham que você é o problema.” Ela faz sua refeição principal às 9 horas da manhã porque, durante o almoço, vai de uma escola na zona norte para outra na zona sul. Por volta das 22 horas, quando chega em casa, prepara a aula que vai dar na manhã seguinte.
O sinal bate e não dá tempo de Joana* ser atendida no conselho de classe. Já na sala de aula, ela passa contas na lousa e chama os alunos um a um para resolver. O ruído do ônibus na rua é alto e ninguém ouve bem as dicas que a professora dá para Beatriz* conseguir resolver 125 x 2.
“Ouçam essa história como se suas vidas dependessem dela”, declara a professora, mudando a matéria. A narrativa é triste, sete irmãos são transformados em corvos e nunca mais verão os pais. As crianças precisam reescrever, de memória, a parte final do texto.
Três alunos não vão para a educação física porque ainda não conseguiram terminar de escrever. “Frango é com M ou N, prô?” pergunta Flávio* à professora. “Prô” é como são chamadas as docentes em escolas públicas. “Quais são as duas letras que podemos usar o M antes?”, ela devolve com outra pergunta. Flávio* não tem ideia.
Ao lado dele, José* empacou na palavra “copinho”. O menino começa a chorar. “Vá lavar esse rosto”, pede Joana*, com a voz cansada de fim de dia. “Eu só brincava disso quando criança, sempre quis ser professora. Cada ano fica pior, mas eu amo meu trabalho.”
*OS NOMES FORAM ALTERADOS
‘Mudança na demografia do País vai permitir valorização’
A ex-economista chefe da área de educação do Banco Mundial e atual pesquisadora da Universidade de Georgetown, Barbara Bruns, acredita que a mudança demográfica que acontece atualmente no Brasil é uma grande oportunidade para se valorizar o professor no País. A quantidade de filhos por família tem caído ao longo dos anos e hoje a taxa média já está em menos de dois. Entre 2004 e 2017, o número de estudantes caiu 13%, em um total de quase 9 milhões de alunos a menos. “O Brasil vai precisar de 15% menos professores até 2025 e isso vai permitir que o governo aumente o salário dos docentes”, disse, em entrevista ao Estado. Barbara é uma das principais especialistas do mundo em pesquisas sobre o magistério e é autora do livro Professores Excelentes, sobre como países da América Latina podem melhorar a aprendizagem de seus alunos.
Quais as políticas mais indicadas para ter bons professores?
Recrutar mais pessoas talentosas para o ensino; treiná-las melhor e ter incentivos que as mantenham motivadas. As três áreas são grandes problemas em países como o Brasil e os EUA. Os incentivos tornam a educação uma profissão que atrai os melhores alunos do ensino médio. É a combinação de salários adequados, alto profissionalismo e pressão para responsabilização. Você é promovido por desempenho, não por ser mais velho, e as pessoas desmotivadas e que não dão bons resultados não são toleradas.
Como fazer para recrutar melhor e formar melhor?
É preciso fechar as escolas de formação de professores de baixa qualidade. E o treinamento dos docentes antes de se formar deve ser focado nas habilidades reais que eles precisam para serem eficazes – como gerenciamento de sala de aula e as estratégias de ensino produtivas. Outra coisa que tem que mudar é que, no Brasil, EUA e países latinos, os únicos estudantes que vão para Pedagogia são aqueles que não conseguem se qualificar para nenhuma outra área.
A queda de natalidade pode ajudar a educação no Brasil?
A América Latina toda tem uma grande oportunidade de elevar a qualidade dos professores porque o número de docentes necessários está caindo. Há cada vez menos crianças em idade escolar; as taxas de natalidade caíram. O estudo do Banco Mundial mostra que o Brasil precisará de 15% menos professores até 2025. Isso permitiria ao governo, mesmo sem gastar mais dinheiro com educação, aumentar os salários dos professores. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.