09/10/2019 - 16:26
Em 7 de julho de 1980, quando o papa João Paulo II (1920-2005) visitava o Brasil pela primeira vez, ele celebrava uma missa campal em Salvador e chamou Irmã Dulce para o altar. Abençoou-a, deu a ela um terço e disse: “continue, Irmã Dulce, continue”. Então com 66 anos, a freira baiana já apresentava a saúde debilitada.
Suas obras continuaram. Persistente – para muitos, teimosa -, hábil em aproveitar as oportunidades e obstinada, a freira soube manter boas relações com políticos e empresários para que seus trabalhos assistenciais fossem mantidos e só ampliassem. Em outubro de 1991, durante nova visita ao Brasil, João Paulo II foi visitar a freira no Convento Santo Antônio, onde ela já estava acamada – morreria em 13 de março de 1992, aos 77 anos.
Vinte e sete anos depois de sua morte, neste domingo, 13, ela se torna oficialmente santa, em missa celebrada por papa Francisco no Vaticano. Na história contemporânea da Igreja, pelos trâmites de canonização vigentes, é o terceiro caso mais rápido de canonização – o próprio João Paulo II tornou-se santo nove anos após a morte; Madre Teresa de Calcutá (1910-1997), 19 anos depois. “Houve um trabalho sempre contínuo, garantindo o belo resultado em pouco tempo”, avalia ao jornal O Estado de S. Paulo o padre Roberto Lopes, delegado Arquiepiscopal da Causa dos Santos do Rio de Janeiro e atualmente trabalhando em Roma.
Lopes comenta que “um processo contemporâneo é sempre mais fácil”. “A possibilidade de encontrar as testemunhas, montar o memorial, a documentação abundante bem organizada, tudo facilita”, pontua. “O testemunho de Irmã Dulce e seu legado é visível. O número de pessoas carentes atendidas no ambulatório (criado por ela) é plausível, admirado por todos.”
“Lembrando que o hoje santo João Paulo II, reconhecendo sua santidade, esteve com ela duas vezes. Outra santa recente, Madre Teresa de Calcutá, também esteve com ela”, cita padre Lopes. O trabalho de canonização, contudo, um rigoroso processo conduzido pelo Vaticano, depende de um fator importante: divulgação bem-feita. “A associação fundada pela Irmã Dulce fez um belo trabalho de divulgação, atendendo e enviando material”, acrescenta ele.
Padre José Ferreira Filho, da Arquidiocese de São Paulo, lembra que, pelas regras da Congregação para a Causas dos Santos, um processo de canonização só pode ser aberto cinco anos após a morte do candidato. “No caso dela, já fazia oito anos, quando o processo começou, em 2000”, afirma. “Intrinsecamente à pessoa de Irmã Dulce, ela demonstrava uma santidade transbordante, fosse no falar, fosse no agir.”
“Sua história de vida conquistou minha devoção pessoal”, declara ao Estado o historiador e teólogo italiano Paolo Vilotta, postulador da causa da religiosa brasileira junto ao Vaticano.
Biografia
Nascida em 26 de maio de 1914 em Salvador, a religiosa foi batizada Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes. Era filha de um dentista e professor da Universidade Federal da Bahia, Augusto, e uma dona de casa, Dulce. Perdeu a mãe aos 7 anos e, por isso, decidiu homenageá-la, adotando seu nome na vida religiosa, aos 19 anos – quando ingressou na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus.
Sua vocação para ajudar os mais necessitados se tornou pública na adolescência. Aos 13 anos, ela começou a acolher doentes e moradores de rua em sua casa. O centro de atendimento informal acabou conhecido como “a portaria de São Francisco”.
Logo depois de assumir o hábito, tornou-se professora de uma escola mantida por sua congregação. Por formação, Dulce era normalista, oficial de farmácia e auxiliar de serviço social. Deu aulas principalmente de geografia e história.
Criou um movimento operário cristão e, um pouco mais tarde, fundou a organização que existe até hoje, com destaque para o atendimento a doentes.
Irmã Dulce também gostava de artes, principalmente música. Em 1948 fundou o Cine Teatro Roma, palco de shows de grandes nomes da MPB, como Roberto Carlos e Raul Seixas. A religiosa ainda criaria dois cinemas em Salvador.
Ainda em vida, recebeu o apelido de “o anjo bom da Bahia”. “Miséria é a falta de amor entre os homens”, dizia a freira. Em 1988, ela foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz. “O amor supera todos os obstáculos, todos os sacrifícios. Por mais que fizermos, tudo é pouco diante do que Deus faz por nós”, é outra de suas frases famosas.
Seus últimos 30 anos de vida foram especialmente difíceis por conta de um enfisema pulmonar, que reduziu sua capacidade respiratória em 70%. Irmã Dulce chegou a pesar apenas 38 quilos.
Canonização
O processo de canonização de Irmã Dulce foi iniciado em janeiro de 2000. Na ocasião, seus restos mortais que estavam na Igreja da Conceição da Praia, em Salvador, foram transferidos para a Capela do Convento Santo Antônio, na sede das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), na mesma cidade.
Em abril de 2009, o papa Bento XVI reconheceu suas virtudes heroicas. Irmã Dulce passou a ser considerada então venerável. Em outubro de 2010, a Congregação para a Causas dos Santos atestou a autenticidade do primeiro milagre atribuído à religiosa – orações para ela, em 2001, teriam interrompido hemorragia de 18 horas de uma parturiente, em Sergipe. Em 22 de maio de 2011, Irmã Dulce foi beatificada em missa presidida pelo cardeal dom Geraldo Majella Agnelo, em Salvador.
Neste ano de 2019, veio o reconhecimento do segundo milagre: a cura de uma cegueira causada por glaucoma, em 2014. Em 14 de maio, papa Francisco anunciou que Irmã Dulce seria canonizada: Santa Dulce dos Pobres será oficializada, então, a 37ª santa brasileira.
Desde então, o número de visitantes do memorial dedicado a ela, em Salvador, quintuplicou. São 15 mil pessoas por mês que vão até lá. “A partir da sua canonização será mais fácil explicar a todos que a santidade não é um privilégio de poucos ou de pessoas especiais, mas está ao alcance de todos – e que é obrigação de todos buscar a santidade”, afirma ao Estado o arcebispo de Salvador e primaz do Brasil dom Murilo Krieger.
Mas o maior milagre de Irmã Dulce tem muito mais de árduo trabalho humano do que de forças divinas. Em 1959, a freira fundou uma instituição filantrópica em Salvador. A Osid é hoje um complexo composto de 17 núcleos, com uma gama de serviços gratuitos que vão de escola de ensino integral a hospital com tratamento de câncer. O centro médico atende a 2 mil pessoas por dia. Anualmente, são realizados ali 2 milhões de procedimentos, com 12 mil cirurgias e 18 mil internações. Tudo de graça. O complexo realiza 3,5 milhões de atendimentos por ano.