18/10/2019 - 9:00
Imagine-se em uma praia paradisíaca com aquele alguém especial. Depois de um pôr do sol pra lá de romântico, bate aquela fome. Digamos que você não seja um ás da caça submarina para tirar da natureza seu jantar. Deu ruim? Não! Seus problemas acabaram!
Você acende uma fogueira, esquenta um pouco de água em uma vasilha e depois abre um pacote embalado a vácuo e joga o conteúdo nessa água. Voilà! Seu jantar à luz da lua estará pronto. E se não tem o charme de um pescado selvagem na brasa, também não é uma gororoba seca ou mal hidratada com pinta de mingau de aveia. Sua refeição tem arroz, peixe, crustáceos ou carne com molho e legumes para acompanhar. O vinho é por sua conta!
Acha que estou narrando alguma cena tirada de um episódio de Black Mirror ou qualquer outra série futurística? Nada disso! Apenas descrevi o ritual de duas pessoas que levaram para o piquenique porções de alimentos liofilizados.
Se você nunca trabalhou na indústria médica, para gigantes do setor de alimentos ou para a NASA, é provável que este termo seja totalmente novo no seu vocabulário. De acordo com a FDA (Food and Drug Administration), o processo de liofilização consiste na remoção da água de um produto depois que ele é congelado e colocado num ambiente a vácuo, o que faz com que o gelo vá do estado sólido ao de vapor sem passar pela forma líquida, o que garante uma série de vantagens em relação a outras formas de congelamento.
Essa tecnologia engenhosa não é ficção científica; ela começou a ser desenvolvida há mais de dois séculos, desde que o físico britânico John Leslie produziu gelo artificial pela primeira vez, em 1810. Já o físico e médico francês Jacques-Arsene d’Arsonval, em 1906, conseguiu remover água a baixas temperaturas, sendo por isso citado frequentemente como o inventor da técnica. Mas foi Leon Shackell o primeiro a congelar tecidos vivos com objetivo de preservação. Outro francês, Henri Tival, conseguiu registrar a primeira patente do processo, em 1927.
Seu uso comercial começou a ser percebido pra valer depois que o médico norte-americano Earl Flosdorf obteve sucesso ao preservar plasma e sangue humanos, em 1933 e, mais tarde, ao liofilizar alimentos como frutas, suco e leite. Durante a Segunda Guerra, a técnica foi bastante utilizada para tratar os feridos, imunizar e alimentar as tropas. A partir dos anos 1950, o patologista britânico Ronald Greaves conseguiu realizar com sua equipe uma série de pesquisas visando novas aplicações.
Com o aperfeiçoamento do processo, a NASA passou a fornecer comida liofilizada para seus astronautas no espaço. Em vez de snacks e comidas fornecidas por tubos, refeições quentes e mais nutritivas.
É preciso deixar claro que alimentos liofilizados não são sinônimo de comida desidratada, porque nesse último caso ocorre a quebra da estrutura molecular dos alimentos, o que provoca perda de nutrientes e também dificulta a reabsorção da água. Com isso, eles não retomam o formato original. Na liofilização essa quebra não acontece, garantindo a integridade dos nutrientes e a preservação das características organolépticas do alimento (cor, sabor, aroma e textura).
E por que ficar de olho nessa tecnologia?
Segundo relatório publicado pela BMI Research no ano passado, os sistemas alimentares no mundo vão enfrentar nos próximos 30 anos uma confluência sem precedentes de pressões, o que envolve o acesso à alimentação, nutrição e sustentabilidade dos sistemas agroecológicos. Tal cenário vai exigir novas abordagens para garantir não só a disponibilidade de alimentos, como a qualidade da dieta e eficiência no uso dos recursos disponíveis.
O desafio não tem nada de corriqueiro. De acordo com as projeções da ONU e da FAO, até 2050 a população humana deve atingir a marca dos 10 bilhões e metade desse contingente viverá na Ásia. Como vamos dar conta de alimentar e nutrir tanta gente ao mesmo tempo em que precisamos restaurar nossos recursos naturais, como floresta e fauna marinha, por exemplo, e recuperar a qualidade do solo para produzir de forma mais eficiente?
Além disso, vamos precisar nos preparar para enfrentar alterações climáticas severas, como aumento dos níveis dos oceanos e das temperaturas na Terra, consequências do aquecimento global e que terão influência sobre o regime de chuvas, na duração das estações e na capacidade agrícola de algumas regiões do planeta.
No mês passado escrevi um artigo sobre o papel que a Amazônia desempenha nessa equação. Se não conseguirmos estancar o padrão atual de degradação, segundo estudo de Israel e Carlos Nobre, até 2050, podemos ter metade da região amazônica transformada em savana, o que teria impacto dramático sobre o agronegócio brasileiro dificultando nossa produtividade.
As projeções feitas pela ONU apontam que o próximo continente que terá um padrão de crescimento explosivo como o da Ásia será a África, que verá sua população mais que triplicar até 2100, atingindo 4,3 bilhões de pessoas (gráfico acima). Isso significa que até o final deste século, 8 de cada 10 pessoas no planeta irão viver na África ou na Ásia e predominantemente em cidades.
Nos últimos 150 anos, enquanto o mundo rico (Estados Unidos e Europa ocidental) dobraram sua renda a cada 36 anos, países em desenvolvimento, como Índia e China, crescem hoje a taxas bem mais rápidas, o que significa dobrar a renda a cada sete anos! Mantido esse padrão, na próxima década cerca de 2 bilhões de pessoas vão ser agregadas ao mercado consumidor, aumentando exponencialmente a demanda por alimentos.
Outro fator a ser considerado é a expectativa de vida média global que praticamente dobrou em um século e hoje fica em torno de 70 anos. No Brasil, hoje ela é de 76 anos, de acordo com o IBGE. Até 2050, os idosos (acima de 65 anos) deverão ser mais de 15% da população mundial, o que aumenta a necessidade de produção de alimentos que atendam a necessidades específicas, como carência de determinados nutrientes, por exemplo.
Em resumo, vamos lidar com um quadro populacional em que 70% das pessoas vivem em cidades, 50% estarão em idade produtiva (entre 15 e 64 anos), com idosos em ascensão. Serão consumidores com níveis de renda consideravelmente mais altos, com perfil consciente e que irão exigir uma alimentação com maior teor nutritivo, sustentável do ponto de vista ambiental e, ao mesmo tempo, prática. A projeção da FAO é de que esse cenário exija um aumento da ordem de 60% na produção alimentar.
O setor de alimentos e bebidas no mundo deve atingir até 2022 um valor próximo aos US$ 10 trilhões, crescendo a taxas de quase 9% ao ano, de acordo com relatório da Business Research Company. E outra particularidade do mercado é o fato de que os consumidores nos países em desenvolvimento gastam 42% do orçamento com alimentos contra 20,7% nos países ricos. Ou seja, há um potencial imenso a ser explorado aí.
Outro dado importante para se lembrar é a crescente preocupação com a saúde. Na China, uma de cada cinco crianças está acima do peso, proporção semelhante à detectada pelo CDC nos EUA – entre os adultos a taxa é de quase 40%. No Brasil, o Ministério da Saúde divulgou em julho desse ano que 56% estão acima do peso. Entre os brasileiros, a saúde é a terceira maior preocupação, atrás apenas da crise econômica e da violência.
Dados assim têm reflexo direto no comportamento dos consumidores. As maiores oportunidades do mercado de alimentos e bebidas estão no uso de ingredientes naturais, produção de alimentos funcionais, com maior valor nutricional e para consumo prático. A consultoria Euromonitor apurou que os alimentos saudáveis movimentaram US$ 446 bilhões em 2018. A tendência ascendente é puxada pelos alimentos orgânicos (sem defensivos) e por aqueles conhecidos como “livres de” (lactose, glúten etc).
Não à toa, os investimentos estão irrigando cada vez mais as chamadas foodtechs, startups que pesquisam e oferecem ao mercado novas alternativas de alimentos, como o hambúrguer vegetal recém-lançado no Brasil pelo Burger King e outras redes de fast food, e as carnes de laboratório.
Há uma comparação que mostra claramente o poder de fogo dessas empresas. A californiana Beyond Meat, fabricante de carnes vegetais, é distribuída em mais de 30 mil supermercados na América do Norte e Europa e seu valor de mercado é hoje de US$ 13 bilhões. A JBS, maior processadora e exportadora de carne animal do planeta vale US$ 14 bilhões.
A foodtech californiana tem 400 funcionários enquanto a JBS emprega 240 mil pessoas no mundo todo. Tomando o valor de ambas as empresas como base, chegamos à conclusão de que cada funcionário da Beyond Meat “vale” US$ 32,5 milhões enquanto o da JBS bem menos, US$ 58, 33 mil.
A empresa norte-americana tem contrato com as redes de fast-food Burger King, Subway e o McDonald’s também tem um produto em teste. Então o quadro é esse: produzir carne animal exige espaço físico para o pasto, gado, alimento para o gado, impacto no meio ambiente. A carne vegetal (ou feita a partir de células animais em laboratório) exige uma estrutura bem menor e funcionários com alto grau de qualificação, abrindo a possibilidade de que cada país supra sua própria demanda em algum momento no futuro. Essa é uma notícia péssima para um dos principais produtos da balança comercial brasileira.
Há também a corrida para desenvolver ingredientes naturais que aliviem nos alimentos industrializados o nível de substâncias como o açúcar, especialmente nas bebidas, o sódio e as gorduras saturadas. Eu fiz um resumo dessas novas tecnologias neste artigo aqui: A tecnologia mudará sua comida no futuro?
É exatamente nesse nicho dos alimentos saudáveis que estão os produtos liofilizados.
E como o Brasil se coloca nesse contexto?
O setor de alimentos representa 9,8% do PIB nacional; é nossa maior indústria de transformação. Somos hoje o segundo maior produtor e exportador de alimentos do mundo. Estamos falando de um grande player mundial! A OCDE é ainda mais otimista e avalia que podemos expandir nossa produção em cerca de 40% até 2050. Em uma década teríamos nos tornado o grande celeiro alimentar do mundo. Mas será que nossa indústria está bem posicionada para entrar na corrida das foodtechs?
Pesquisa do Euromonitor Internacional indica que entre 2009 e 2014 o mercado de alimentação saudável cresceu 98% no Brasil e somos o quinto maior mercado do mundo de alimentos e bebidas saudáveis. Levantamento inédito feito pela Liga Insights apurou a existência de 332 foodtechs no país em 2019.
Uma delas é a Liomeal, fundada em 2015, em São Carlos, no interior de São Paulo e que produz alimentos liofilizados, como um “biscoito” de açaí com banana. “Quando a gente tem uma visão clara do potencial transformador do nosso negócio e os benefícios que pode trazer para o mercado e para a saúde das pessoas, temos força para enfrentar qualquer desafio”, diz o engenheiro Henrique Terrone, CEO da empresa.
“Há quem diga que a alimentação é a nova internet, pelo tamanho da oportunidade do mercado.”, Henrique Terrone
Os esforços da indústria tradicional, com ou sem ajuda das techs, vão desde tirar os conservantes dos sucos de caixinha a reduzir o açúcar nas fórmulas de iogurte, sem contar as carnes vegetais cujo consumo virou praticamente um ato político de quem considera o modelo da nossa pecuária insustentável, tanto por exigir aumento do estoque de terra para crescer, fazendo pressão sobre a mata nativa, como porque é uma atividade que gera intensa emissão de dióxido de carbono.
Por que os liofilizados têm muito potencial?
Na opinião de Tara McHugh, pesquisadora para comidas saudáveis do Departamento de Agricultura dos EUA, é difícil encontrar desvantagens na liofilização, exceto pelo custo inicial mais alto requerido pelo processo que dura cerca de 24 horas.
Além de preservar o valor nutricional e a aparência, os alimentos liofilizados podem ser produzidos de várias formas, além da original: em pasta, líquido, em fatias, em pedaços, como snacks ou pratos prontos ou ainda em pó para bebidas de preparo fácil ou incremento de receitas. Podem ser consumidos em sua forma liofilizada ou reidratados para consumo como descrevi no começo do artigo.
Como a LIOFILIZAÇÃO se trata, em essência, de um processo de conservação, a validade dos produtos é muito alta, chegando até a 25 anos sem precisar de refrigeração ou nenhum outro ambiente especial para armazenagem. Também se tornam extremamente leves, o que facilita o transporte e manuseio. Ou seja, o custo inicial mais alto pode ser absorvido com o ganho de escala com custos menores de logística, um dos grandes entraves na economia brasileira.
Isso representa uma grande solução para o desperdício alimentar, calculado pelo Programa Ambiental das Nações Unidas (Pnuma) em US$ 1,2 trilhão. Ou seja, de tudo o que nossos sistemas agrícolas produzem deixamos estragar e perdemos 1,6 bilhão de toneladas por ano. Um quarto desse total daria para erradicar a fome no mundo! Não por outra razão, frutas, legumes e verduras são a maior fatia da produção de liofilizados.
Do ponto de vista ambiental, portanto, o processo é bastante inteligente. Reduz a perda e permite reutilizar a água retirada dos alimentos, inclusive para gerar energia. As cascas, sementes ou sobras, em vez de contribuírem para aumentar o volume de resíduos sólidos, podem ir para compostagem e gerar biogás por processo anaeróbio.
Se mantidos selados, sem contato com o ar, os alimentos liofilizados não sofrem alterações mesmo quando expostos a situações envolvendo condições meteorológicas extremas. Por conta dessas características e de sua alta durabilidade sem nenhuma exigência de armazenamento, eles são muito populares para praticantes de esportes radicais e também por aqueles que pensam em armazenar mantimentos prevendo condições catastróficas provocadas pelo aquecimento global, como terremotos, maremotos ou uma quebra de safra prolongada.
Esse mercado faturou US$ 55 bilhões em 2018, segundo a empresa de consultoria Mordor Intelligence. Com uma taxa de crescimento de 8%, deve chegar a US$ 85,3 bilhões em 2024. Essa é uma indústria que se beneficia diretamente do aumento da consciência dos consumidores a respeito dos efeitos nocivos de aditivos utilizados para conservar alimentos e bebidas.
O processo de liofilização permite não apenas a produção de alimentos prontos para consumo, como também de ingredientes e insumos para abastecimento dos cartuchos de impressoras 3D no setor de alimentos. A NASA já colocou em teste uma máquina de impressão de comida para astronautas.
Mais algum tempo e você nem precisará se preocupar com a marmita para levar ao trabalho. Basta levar seu pacote liofilizado de casa para reidratar ou (sinal dos tempos!) imprimir o almoço. O espaço sideral parece ser o “limite” para esse processo de reinvenção da comida. E então? Está pronto para incluir liofilizado na sua dieta?
(*) Omarson Costa atua como Conselheiro de Administração, com formação em Análise de Sistemas e Marketing, tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua carreira, registra passagens em empresas de telecom, meios de pagamento e Internet
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