01/05/2024 - 14:20
Uma aluna de medicina da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) foi condenada pela Justiça Federal à perda da vaga e ao pagamento de indenização por fraude ao sistema de cotas. A ação foi movida pelo Ministério Público Federal (MPF) e teve sentença na última semana.
A estudante terá de devolver aos cofres públicos o valor de R$ 8,8 mil por danos materiais e R$ 10 mil por danos morais individuais causados à Unirio. Deverá ainda realizar o pagamento de R$ 10 mil por danos morais coletivos destinados ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD). A decisão é de primeira instância e cabe recurso ao Tribunal Regional Federal (TRF).
A aluna entrou na universidade em 2017 por meio do sistema de ações afirmativas destinado a pretos, pardos e indígenas, alegando ter traços genotípicos pretos herdados do bisavô paterno e ascendência familiar parda, por parte do lado materno.
De acordo com o MPF, por meio do mecanismo de autodeclaração de raça, a estudante burlou o sistema de cotas e a declaração de renda, por ser “fenotipicamente branca e seus pais apresentarem padrão de vida e patrimônio não condizentes com o declarado”.
Já a estudante alega que quando que ingressou na faculdade, o único critério utilizado pela instituição era o da autodeclaração.
À época, a Unirio não tinha comissão de heteroidentificação racial para avaliar o ingresso de novos estudantes.
O mecanismo é uma forma de controle do direito à reserva de vagas, podendo a comissão desautorizar a matrícula quando concluir que o fenótipo do candidato não se enquadra no grupo racial declarado.
Com a posterior instalação da comissão em 2018, a estudante foi reprovada durante procedimento de heteroidentificação retroativa para averiguar a informação declarada sobre sua condição de preta ou parda, com base nos traços físicos.
Em sua defesa, a aluna alegou não haver previsão de avaliação por banca de heteroidentificação no edital da universidade.
Na ação civil pública, o MPF defende que a autodeclaração não tem presunção de verdade absoluta, não existindo impedimento para que a Unirio revise e anule a matrícula de estudantes que não se enquadram nas políticas de cotas diante de indícios de ocorrência de fraude.
O órgão ressalta que “o Supremo Tribunal Federal (STF), o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Federal Regional da 4ª Região (TRF4) já entenderam ser legítima a adoção de mecanismos adicionais de apuração da autodeclaração para combater condutas fraudulentas e assegurar, no âmbito universitário, a mudança no quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais no Brasil”.
Para o MPF, a ocupação indevida de vaga reservada às cotas raciais desrespeita “o dever do Estado e da própria sociedade de construir uma sociedade solidária, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos sem preconceito de raças”.
Na sentença, a Justiça Federal diz que “não há como alegar a boa-fé na conduta da ré, pois, no termo de autodeclaração, invoca ancestralidade para tentar adequar-se às políticas de ação afirmativa porque ciente de sua compleição e traços físicos incompatíveis com os parâmetros fenotípicos e os objetivos de tais políticas”.
A defesa da estudante afirma que a sentença “está em sentido contrário a diversas decisões proferidas pelo Tribunal Regional Federal da Segunda Região relacionadas à própria ex-discente, além da própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema”.
“Na Ação Civil Pública já foi decidido pelo Tribunal Regional que a aplicação do critério da heteroidentificação sem previsão no edital é terminantemente ilegal. Por isso, não há que se falar em fraude por parte da ex-discente, uma vez que a autodeclaração se deu com base nos critérios estabelecidos à época de ingresso. O próprio Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, em outras situações, deixou de recorrer em processos semelhantes, e inclusive se manifestou nos autos do processo judicial em sentido contrário à existência de qualquer ilegalidade em alunos que ingressaram antes da instituição das comissões de heteroidentificação”, afirma o advogado da ex-aluna.
A Unirio afirmou que “considera de fundamental importância que a universidade seja um espaço inclusivo, popular, com presença significativa de negras e negros em sua comunidade acadêmica, seja no segmento discente, seja entre os servidores”. “Desse modo, a Universidade vê a política de cotas como importante conquista da sociedade. Paralelamente, a gestão universitária se pauta sempre pelo compromisso com a lisura e com o cumprimento do que é determinado pela Justiça”.
Outros casos
O caso da aluna da Unirio vai no sentido oposto de diversos outros que vieram à tona nos últimos meses, após um estudante que se autodeclarava como pardo ter tido sua matrícula barrada pela USP para o curso de medicina.
Também na USP, ganhou repercussão a situação de um estudante aprovado para o curso de Direito, que também teve a matrícula negada, pois não foi considerado pardo pela banca de heteroidentificação.
Na Universidade Federal Fluminense, um estudante autodeclarado como negro foi impedido de se matricular no curso de Jornalismo devido a uma falha no áudio de seu vídeo.
Nos três casos, a Justiça ordenou que a universidade matriculasse os estudantes.
A recorrência de divergências entre o entendimento da universidade e da Justiça quanto à identidade racial de estudantes tem gerado debates quanto à melhor forma de se analisar os critérios para identificação como pretos e pardos.
O Supremo Tribunal Federal (STF), porém, já definiu que devem ser analisadas por meio das características fenotípicas (como cor da pele, formato do nariz e lábios e textura do cabelo), e não pela ancestralidade.