06/07/2023 - 13:37
Durante passagem pela Alemanha em 2004, lendário dramaturgo José Celso Martinez Corrêa falou que libertar desejos era uma atitude política forte, e que tal cultura “pode ser boa para os outros povos”.Em 2004, o Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona fez sua primeira turnê internacional. Foi o galpão da mina Auguste Victoria, em Recklinghausen, no oeste do país, com apresentação de Os Sertões, o ponto de partida para a trajetória no exterior da quarta versão do Teatro Oficina, fundado em 1958 por José Celso Martinez Corrêa, ou Zé Celso, e estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
“Esta é a fase mais rica e mais ambiciosa [do Teatro Oficina]. Os Sertões é uma obra imensa. Por enquanto fizemos A Terra, O Homem, hoje (23 de maio de 2004) vamos apresentar o ensaio geral da primeira expedição, temos ainda a segunda e a terceira, juntas vão compor um espetáculo. Depois a quarta, que deve dar mais dois espetáculos. Ao todo, a gente vai ter umas 50 horas de peça, a gente é Guinness, certamente!”, descreveu Celso, morto nesta quinta-feira (06/07), aos 86 anos, à DW, numa longa e exclusiva entrevista.
O lendário dramaturgo destacou que tinha “uma influência muito grande do [filósofo alemão Friedrich] Nietzsche”. “Eu adoro Nietzsche, sou apaixonado”, afirmou.
Na ocasião, Zé Celso também disse que a libertação de desejos “é uma atitude política muito forte, hoje”. “As pessoas estão querendo soltar a franga, no mundo inteiro. No Brasil é mais fácil, pois tem uma multidão de excluídos que tenta se virar. Aliás, essa multidão é responsável pela sobrevivência do Brasil”, colocou. Para ele, na época, “liberação sexual, inclusive no Brasil, diminuiria demais a violência. Assim como a descriminalização das drogas. Porque o marginal é obrigado a ter uma atitude muito machista.”
Confira abaixo os principais trechos da primeira parte da entrevista. Clique aqui para acessar também a segunda parte.
E a Alemanha pós-Nietzsche? O nazismo ocupa você?
José Celso Martinez Corrêa: Ocupa, sim. Tanto o nazismo como o stalinismo – porque a Alemanha viveu as duas experiências – criaram no povo alemão um recalque, um medo muito grande da emoção, da “tempestade do ardor irresistível” [Sturm und Drang, movimento do século 18]. O que acho que o nazismo fez, foi utilizar a emoção, mas militarizá-la, geometrizá-la, colocá-la a serviço dos sentimentos pequeno-burgueses, os mais vulgares, os mais torpes.
Você vê nos filmes da Leni Riefenstahl: as cerimônias nazistas são, todas elas, absolutamente retas, quadradas, matemáticas. Não se compara com o Carnaval da Bahia, mesmo com o Carnaval da escola de samba. As multidões podem criar também… os seres humanos podem liberar as emoções, sem necessariamente cair nem no nazismo nem no stalinismo.
Tanto um como outro utilizam a emoção das massas e a canalizam. Como a própria ordem liberal, que coloca tudo em função do dinheiro e do marketing. Só que é um nazismo APARENTEMENTE mais light. Nós vivemos numa sociedade stalinista e nazista, sob a ditadura brutal do capital financeiro, que utiliza, que compra também a vida privada das pessoas.
Como você consegue de seus atores essa entrega total que se vê no palco?
É uma tendência que as pessoas têm. Elas querem se dar, “soltar a franga”, sair dos seus limites. A própria tragédia grega acontece quando há hybris, quando você ultrapassa o limite. O limite de tempo, por exemplo, essa coisa do espetáculo de uma hora e meia, da agenda.
Só quando você sai da agenda é que começa a descobrir a riqueza que o ser humano tem. Principalmente na ordem liberal, que é muito avarenta para com o ser humano, em que ele é transformado numa idéia única de homem, que é assim, assado, é o consumidor.
Então se tem uma idéia preconceituosa de homem, extremamente massacradora do potencial criador. Quando você acena para as pessoas libertarem os seus desejos, eu sinto que é uma atitude política muito forte, hoje.
As pessoas estão querendo soltar a franga, no mundo inteiro. No Brasil é mais fácil, pois tem uma multidão de excluídos que tenta se virar. Aliás, essa multidão é responsável pela sobrevivência do Brasil. Como diz o Caetano Veloso, o povo ainda mantém viva essa cultura libertária. O povão brasileiro é completamente amoral: tanto que ele rouba, mata, pede esmolas, ele faz tudo para sobreviver, se organiza no crime organizado…
Ele não tem moral, apesar de a Igreja tentar conduzir os movimentos políticos de maneira a não irem tão longe quanto poderiam, porque ela segura um pouco no catolicismo.
Eu acho que liberação sexual, inclusive no Brasil, diminuiria demais a violência. Assim como a descriminalização das drogas. Porque o marginal é obrigado a ter uma atitude muito machista.
Mesmo essas crianças, quando elas começaram a entrar, os companheiros de rua disseram: “Vocês vão virar veados, vão dar a bunda, vão ficar pelados!” E na Febem, no Brasil, eles são tratados com muita violência. Se a Febem tivesse um tratamento como nós damos no Teatro Oficina, um tratamento libertário, a situação seria diferente.
Puritanismo do capital
Acho que o mundo é dominado por uma cultura puritana. A cultura do DINHEIRO é puritana, do bem e do mal. Tenho a impressão de que todos os povos do mundo são libertários, o ser humano em si é libertário. Agora, ele recebe uma educação violentamente autoritária, puritana, dividida em bem e mal. É por isso que o Nietzsche é tão importante: Além do bem e do mal.
É por isso que o Noel Rosa, o próprio Euclides da Cunha, Oswald de Andrade, Glauber Rocha, o Gilberto Freyre, a poesia, a literatura brasileira, o candomblé… É uma cultura libertária, ela tem em si uma política muito mais importante do que muito do que veio do Capital, do marxismo, do Kennedy, dos americanos, do monetarismo.
Nós temos uma cultura libertária mais ou menos definida, e é uma riqueza nossa que vai se transformar em política, e pode ser muito boa para os outros povos todos. Para o povo chinês, que sofre muita repressão, mas acredito que seja muito sem-vergonha, também. Como o povo russo é muito sem-vergonha, muito religioso. O alemão, depois que bebe, solta a franga mesmo. Eu acho que é uma questão de transmutação de valor, aí.