19/06/2002 - 7:00
O casamento tinha tudo para dar errado. Afinal, os noivos nem sequer falavam o mesmo idioma. Foram criados em culturas diferentes e tinham hábitos arraigados ao longo de séculos de existência. Ninguém no mercado corporativo acreditava que a união Renault-Nissan, que criou a quarta maior montadora do planeta, poderia render frutos. Três anos após a troca de alianças, os fatos contrariaram as mais otimistas das previsões. Depois de enviar um de seus melhores executivos para tocar a operação japonesa, o brasileiro Carlos Ghosn, injetar US$ 4,4 bilhões na montadora e investir três anos em cortes de custos e demissão de 20 mil funcionários, a Nissan renasceu.
É hoje um exemplo no setor automotivo mundial. E não se trata apenas de retórica. Há quem diga que a história está sendo radicalmente alterada. Em poucos anos, a criatura, Nissan, pode
até engolir sua criadora. ?Estamos colhendo muito rápido os frutos dessa aliança?, explica à DINHEIRO Toshiyuki Shiga, vice-presidente sênior da Nissan, que esteve no Brasil na semana passada para acompanhar o lançamento do primeiro carro da montadora, a picape Frontier, e falar sobre os novos planos que incluem até a montagem de carros populares.
O sinal mais forte da ?niponização? da Renault veio de seu atual todo-poderoso, o presidente Louis Schweitzer. Ele já adiantou: seu sucessor será Carlos Ghosn. Em 2005, o superexecutivo brasileiro acumulará a presidência de ambas as montadoras. Sinal de que uma Nissan revitalizada é quem conduzirá a modernização da Renault. Antes mesmo disso, o processo de ?niponização? da montadora francesa já tinha começado. Nos quartéis-generais da Renault, em Boulogne Guiancourt, Paris, os olhos puxados vêm dando o tom. Executivos de primeira linha, como Kasumasa Katoh, ex-diretor da divisão de transmissões da Nissan Motor Corp, mudou com mala, família e cuia para a capital francesa. Assumiu a mesma divisão na Renault. Com uma equipe de 3 mil funcionários franceses, tem uma dura missão: demonstrar como a Nissan constrói alguns dos melhores motores da indústria automobilística. Um levantamento da Associação Técnica de Vistoria Alemã (TüeV) ? uma espécie de Detran local ? demonstra como a Nissan tem modelos mais duráveis do que o melhor carro produzido pelas concorrentes européias. ?Há muito tempo, o Japão faz escola no que diz respeito à qualidade dos automóveis?, conta à DINHEIRO Gian Primo Quagliano, presidente do Centro Studi Promotor, um instituto de análise do mercado europeu.
Em conjunto com a francesa Dassault, a empresa lidera um dos mais fortes consórcios da concorrência e também a bolsa de apostas. A palavra final virá nas próximas semanas, quando deverá ocorrer uma reunião do Conselho de Defesa Nacional, órgão comandado pelo presidente da República. Nessa corrida, Gavião Peixoto é uma espécie de quartel general da Embraer. Foi construído para abrigar suas atividades industriais no mercado de defesa, segmento que movimenta US$ 350 bilhões no mundo. A meta é transformar a nova unidade em um pólo de exportação dos caças, principalmente para a América Latina. Existem hoje, pelo menos, 50 Mirages na região, com idade relativamente avançada, e os novos de última geração, iniciariam uma outra fase da aviação militar no Brasil. Está em jogo é um mercado de cerca de US$ 3 bilhões. A vitória na licitação brasileira traria outras vantagens como a incorporação da tecnologia supersônica, o que forçaria o desenvolvimento de áreas como a engenharia, aerodinâmica e de integração de sistemas.
Uma Embraer subsônica (como é hoje) e supersônica (como poderá ser amanhã) passaria a oferecer uma linha completa de produtos, dos jatos comerciais e executivos às aeronaves camufladas munidas de radares e mísseis eletrônicos. A base militar está montada. Instalada num terreno de 17 milhões de metros quadrados, possui seis hangares e a maior pista de pousos e decolagens do Hemisfério Sul com 5 km de extensão. ?Ela permite até o pouso de um Jumbo 747-400?, comemora Romualdo de Barros, vice-presidente da área de defesa. Parceiros da sócia francesa Dassault poderiam aterrissar em Gavião Peixoto quando, e se, a demanda por Mirage justificar uma produção em série. Por enquanto, a encomenda da FAB, de 12 a 24 aviões, não é suficiente para iniciar uma fabricação total ? apenas a montagem. Um estudo da Aeronáutica, porém, revela que serão necessárias mais aeronaves para defender o espaço aéreo brasileiro. Fala-se em 32 caças, o que exigiria nova concorrência. Uma vitória da Embraer na atual licitação lhe daria o favoritismo para a segunda fase. Isto porque a estrutura operacional já estaria montada em torno dos Mirages. Ninguém na Embraer, do piloto de testes ao presidente Botelho, cogita uma eventual derrota na concorrência. Na inauguração da fábrica de Gavião Peixoto, o clima era de confiança. ?Não temos como perder?, garantiu Barros. ?Este não foi um projeto feito da noite para o dia. Foi cuidadosamente estudado e será bem-sucedido?. Ponto a ponto, a Embraer pode mostrar que o projeto montado em parceria com a Dassault é mais eficaz que os planos criados pelos americanos da Lockheed Martin (que apresentam o F-16), os suecos da Saab (com o Gripen) ou os russos da Rosoboronexport (Sukhoi-35).
Existem três fatores que decidem a corrida. O primeiro é técnico. Nesse caso, segundo técnicos da FAB ouvidos por DINHEIRO, a parada está decidida ? e a favor da Embraer. Na avaliação técnica do Deped ? Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento, órgão ligado ao Alto Comando da Aeronáutica, sobraram na reta final o Mirage e o Sukhoi. A preferência recaiu sobre os franceses, que teriam levado a melhor em sete de dez itens avaliados. O segundo ponto é o preço ? e aí a disputa está mais ou menos empatada, já que existe um valor próximo a US$ 700 milhões definido no edital da concorrência. Possíveis diferenças entre os participantes podem ser compensadas na forma de financiamento internacional e nos prazos de pagamento.
Resta, portanto, o último e mais polêmico fator: a compensação por parte do vencedor. Aí estão incluídas tanto a transferência de tecnologia como as contrapartidas comerciais. ?Temos o melhor produto e a melhor tecnologia. Além disso, somos o único consórcio em que há a uma associação efetiva entre os participantes e isso garante o comprometimento com as operações?, diz Barros. Ele se refere à sociedade montada há dois anos entre a empresa brasileira e os europeus Dassault, Snecma, Thales e EADS. Os estrangeiros hoje detém 20% do controle acionário da Embraer. ?Nenhum concorrente garante isto?, completa Botelho. Segundo ele, é uma questão de soberania nacional, em um setor considerado estratégico para qualquer país. ?Esta é talvez a grande arma da Embraer?, atesta Ernesto Klotzel, especialista em aviação. ?A concorrência deveria ser nacional ou nem deveria ocorrer?, endossa Ozires Silva, presidente da Varig numa declaração surpreendente, pois uma de suas subsidiárias, a Varig Engenharia e Manutenção, participa do consórcio BAE/Saab fabricante do Grippen.
É um assunto complexo, pois envolve ingredientes técnicos e políticos. Essa parece ser o principal motivo para o novo adiamento da reunião do Conselho de Defesa Nacional que iria dar a palavra final sobre a licitação. O encontro estava marcado para a semana passada, mas foi cancelado por, pelo menos, 30 dias. A Aeronáutica quer obter mais informações e garantias dos fabricantes a respeito da transferência de tecnologia. Há tantas dúvidas a respeito que o relatório técnico ainda não foi remetido ao gabinete do ministro da Defesa, Geraldo Quintão. Só depois disso o presidente Fernando Henrique convocará o Conselho. ?Não basta falar em transferência de tecnologia, tem de assinar documento?, diz a seus colegas de farda o brigadeiro Carlos Baptista, comandante da Aeronáutica. Nesse aspecto, só o consórcio da Embraer cumpriu o requisito.
O próprio Baptista reiterou essas dúvidas em reunião secreta da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados na terça-feira 11. Ele não declarou qual seu avião preferido. Mas os parlamentares concluíram que, a esta altura, a dúvida da FAB está realmente entre o Mirage e o Sukoi. Os franceses levam a vantagem de entregar os códigos-fonte dos sistemas eletrônicos e de armamentos de seu avião. Os militares brasileiros já manifestaram o desejo de não adquirir os F-16, em razão das restrições de transferência de tecnologia. Também deixam vazar que o Gripen
não é adequado à extensão do território brasileiro. Segundo
eles, a aeronave só cruza o País com quatro paradas para reabastecimento.