Livros de autores indígenas começaram a ser publicados no país somente a partir da década de 1980. Escritores rompem com preconceitos e estereótipos, mas ainda enfrentam desafios.A morte do escritor e gramático Evanildo Bechara abriu uma nova cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL) e a oportunidade de torná-la mais indígena. A professora, escritora e ativista Eliane Potiguara se candidatou à vaga e pode se somar ao escritor e ativista Ailton Krenak, o primeiro indígena a ocupar uma cadeira na academia.

Tanto a presença de Krenak quanto a candidatura de Potiguara representam muito mais do que apenas o acesso à ABL, falam sobre a importância e reconhecimento que a literatura indígena contemporânea tem ganhado no Brasil atualmente.

O país tem cerca de 83 escritores indígenas, de 39 povos distintos, e mais de 200 obras de autoria indígena catalogadas, de acordo com o projeto Bibliografia das publicações indígenas do Brasil. “A literatura indígena contemporânea rompe com séculos de silenciamento e apagamento das vozes indígenas no Brasil. Não é apenas uma forma de expressão artística, mas um ato de afirmação de identidade”, afirma Djalma Enes Filho, professor e pesquisador da Universidade Federal do Acre (UFAC) Campus Floresta.

Essa jornada de visibilidade se fortaleceu com o próprio reconhecimento da identidade indígena, a partir da Constituição de 1988, e com a chegada dos indígenas na condição de autores ao mercado editorial e não mais como personagens de uma narrativa escrita por não-indígenas. Mas, apesar dos exemplos de Potiguara e Krenak, essa área ainda enfrenta muitos desafios para a sua consolidação, como a subidentificação – fruto da impossibilidade de se dizer indígena – e o discurso que associa os indígenas apenas à oralidade.

“Não sabemos quantos autores indígenas estão subidentificados na literatura brasileira porque não podiam afirmar a identidade indígena”, explica a escritora e pesquisadora Trudruá Dorrico, doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e indígena da etnia Macuxi.

Dorrico lembra que o próprio processo de colonização interrompeu o desenvolvimento do que poderia ser compreendido como a escrita dos povos indígenas – visível nas letras ancestrais registradas em pedras, tecidos, cestarias e casas. “A oralidade está presente, mas ela não pode ser o fundamento das nossas sociedades, porque nós sabemos escrever. Nos dê a técnica que vamos aprender e compartilhar coletivamente”, diz.

Dos indigenistas à literatura indígena contemporânea

Até a década de 1990, era difícil encontrar obras publicadas com nome de autores indígenas na capa ou na ficha catalográfica. Os povos costumavam ser retratados por meio do que se conhece como literatura indigenista, corrente que abordava a temática e se apropriava dos elementos das etnias, mas era escrita por não-indígenas.

É o que se vê em obras consideradas clássicas como Iracema e O Guarani, do escritor cearense José de Alencar (1829-1877), e em Macunaíma, do paulistano Mário de Andrade (1893-1945). “As representações que temos da literatura brasileira sobre povos indígenas são vastas, mas são descompromissadas com qualquer humanidade, valor e política dos povos indígenas”, afirma Dorrico.

A introdução dos indígenas como autores das obras, que começou de maneira esporádica com a própria Eliane Potiguara ainda na década de 1970 e se fortaleceu duas décadas depois, é o que marca a diferença entre o passado e o presente. “Os indígenas trazem suas identidades, pertencimentos, povos e valores [para a literatura], que o Brasil mesmo tentava extinguir. A literatura indígena é demarcada por esse território da autoria, de ser reconhecido como indígena e receber os direitos patrimoniais e morais”, diz Dorrico.

Essa literatura nasceu também da organização política dos povos indígenas brasileiros para defender seus territórios. “Esse movimento impulsionou a produção cultural e intelectual como forma de resistência e de afirmação de identidade”, diz Enes Filho. A partir daí, muitos escritores indígenas começaram a se apropriar da educação formal e da escrita como instrumento de luta.

“A literatura indígena veio de mãos dadas com a educação indígena. Ela fez esse papel de conversar com a necessidade dos povos indígenas de ter materiais e a necessidade de a sociedade não-indígena entender o nosso território como plurinacional”, explica Jamille Anahata, ativista do povo indígena Mura, poeta e pesquisadora de relações étnico-raciais.

Lei estimula busca por obras

A primeira publicação de livro de autoria indígena no Brasil aconteceu em 1980, com a obra bilíngue Antes o mundo não existia: mitologia dos antigos Desana – Kêhíripõrã, de Umusi Pãrõkumu e Tõrãmu Kehíri, escrita em português e desana (uma língua indígena falada na Amazônia brasileira e colombiana).

Depois vieram outras obras importantes, como o livro Oré awé roiru’a ma: Todas as vezes que dissemos adeus, de Kaká Werá Jecupé, em 1994, considerado o primeiro livro literário de autoria individual publicado por um indígena no Brasil. Em seguida, veio Histórias de índio, de Daniel Munduruku, de 1996, o primeiro para o público infantil.

A partir dos anos 2000, com a publicação da Lei 11.645/2008, que estabelece a obrigatoriedade ensino das culturas indígenas e afro-brasileiras no currículo escolar, as editoras passaram a buscar cada vez mais por obras produzidas por indígenas.

Isso foi reforçado pelo Programa Nacional do Biblioteca na Escola, que entre 1997 e 2015 distribuiu livros de autores indígenas nas redes públicas de ensino, e pelo interesse da academia no assunto, já que pesquisadores de diferentes áreas passaram a estudar essa produção. “Muitos autores começaram a ocupar espaço nas redes sociais, feiras literárias, em debates acadêmicos e na mídia em geral”, acrescenta Enes Filho.

Um dos projetos de divulgação existentes nas redes sociais é o Leia Mulheres Indígenas, mantido por Dorrico e Anahata. Criado pouco antes da pandemia de covid-19, ganhou força durante a crise sanitária mundial e tem hoje cerca de 20 mil seguidores.

“A literatura de autoria indígena é muito colocada como produção para o público infantil, e essa iniciativa tem o papel também de mostrar em que outros lugares da literatura as autoras estão, e também a diversidade de povos, lugares e rostos”, conta Anahata.

Características da literatura indígena contemporânea

Além do marco autoral, a produção tem outras características fundamentais, pois parte de outro paradigma de mundo, em que natureza e cultura não estão dissociadas. “A literatura indígena traz muito o espaço da floresta, porque é de onde vem o nosso conhecimento, mas também traz espaços urbanos. E, mesmo em cidades, a floresta está presente”, explica Dorrico. “A natureza não é só um pano de fundo”, complementa Anahata.

Essa relação com a natureza também influencia na construção dos personagens, pois seres encantados não são descritos como folclóricos, e o espaço-tempo não está, necessariamente, ancorado no tempo histórico. A narrativa tampouco é apenas linear.

“Isso revela uma visão de mundo profundamente conectada com o território e a espiritualidade. O uso simbólico da natureza é um ponto de expressar valores coletivos e éticos que contrapõe a lógica da exploração e da destruição ambiental”, diz Enes Filho.

As obras também têm hibridismos de linguagens, em que um livro pode misturar gêneros – como poesia, ensaios e relatos. Outra característica é a capacidade de transitar entre a escrita e outras formas de expressão, como a música. “Muitos textos assumem uma estrutura narrativa que lembra os relatos orais tradicionais com repetições, ritmo, musicalidade e uso de expressões das línguas indígenas”, explica Enes Filho.

É também uma literatura instrumento de resistência social, cultural e política, que pode ser vista na obra de escritores como Daniel Munduruku, Olívio Jekupé, Eliane Potiguara, Cristino Wapichana, entre outros. “Eles utilizam a palavra como ferramenta de denúncia contra o racismo e a invisibilização histórica dos povos originários. É uma literatura que reivindica a memória, a identidade e o território”, diz Enes Filho.

Como exemplos dessa reivindicação estão obras como Metade Cara, Metade Máscara, de Eliane Potiguara, A Terra dos Mil Povos, de Kaká Werá Jecupé, e Meu vô apolinário: Um Mergulho no rio da (minha) memória, de Daniel Munduruku.

Apesar da visibilidade, desafios para expansão permanecem

Mesmo diante da inserção no mercado editorial, a literatura indígena contemporânea ainda enfrenta muitos desafios para se expandir. O principal deles é o preconceito contra os povos indígenas, que ainda faz muitas editoras enxergarem a produção de autores indígenas com desconfiança ou classificá-las como de um “nicho exótico”.

O preconceito impede também que os povos indígenas sejam enxergados como produtores de conhecimento. Ainda é comum que muitos daqueles que chegaram às universidades e espaços de formação sejam descritos como não-indígenas.

Outro desafio é a falta de representatividade no próprio circuito, já que são poucos os editores, editoras, revisores, curadores e agentes literários indígenas. Isso impede que os valores culturais e estéticos dos povos originários entrem nas mesas de decisão sobre o que é publicável. Depois de publicadas, essas obras ainda enfrentam o desafio de receber investimentos para divulgação, distribuição e marketing.

Apesar da Lei 11.645, ainda há também resistência para inserção dos autores indígenas nas escolas e universidades, seja pela falta de materiais didáticos disponíveis nas bibliotecas ou pela falta de formação dos docentes para o tema. “A inserção dessa literatura no ambiente escolar ainda é tímida e depende muito do esforço individual de professores que sejam realmente comprometidos”, diz Enes Filho.

Para superar esses desafios, há alguns projetos em curso no país. Alguns deles são o Prêmio Akuli, da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), voltado ao reconhecimento das histórias de tradição oral indígenas, quilombolas e ribeirinhas, e o Prêmio Cunhambebe Tupinambá, do Museu Nacional dos Povos Indígenas e da Funai. Há algumas editoras também, como a Pachamama, que publica livros bilíngues. Além disso, há o encontros de escritores.

Fortalecimento da literatura indígena

Questionados, os Ministérios dos Povos Indígenas (MPI) e da Cultura (MinC) afirmaram que assinaram um protocolo, em maio, para entre outras ações fortalecer a literatura indígena com apoio na formação de autores, incentivo à produção de livros e ampliação do acesso a políticas de fomento. O MinC afirmou que ainda está em curso no país um projeto para traduzir a Constituição Federal para línguas indígenas.

Na área da educação, o Ministério da Educação (MEC) afirmou que assessora a formulação de políticas voltadas à alfabetização de estudantes indígenas, com apoio à produção de materiais bilíngues distribuídos nas escolas públicas. Em 2025, foi criada a Rede de Coordenadores dos Saberes Indígenas (ReCo-ASIE), para a produção de metodologias e materiais didáticos específicos, incluindo obras literárias de autoria indígena.

No ensino superior, o MEC afirmou ainda que tem estimulado a inclusão de autores indígenas nos currículos dos cursos de licenciatura e que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pelo Enem, já incluiu textos de autores como Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Kaká Werá Jecupé, Graça Graúna e Olívio Jekupé em edições recentes do exame.