Haicais, minicontos, aforismos: cânones literários brasileiros e expoentes da novíssima geração encantam com formatos suscintos que fazem “pensar mais que muito livro grosso”.Estrela Ruiz Leminski guarda na memória o “tec-tec-tec” da máquina de escrever do pai. Quando ouvia o barulho das teclas, fazia silêncio. “É como se dissesse: ‘Não atrapalhe! Seu pai está no meio de uma ideia'”, ri a escritora, que tinha oito anos quando Paulo Leminski morreu, em 1989. Dos incontáveis haicais que ele escreveu, aponta “pelos caminhos que ando / um dia vai ser / só não sei quando”, do livro Distraídos Venceremos, como o seu favorito. “Ele partiu sem saber o impacto que a obra dele teria, sem sonhar que, um dia, seria o poeta mais pop do Brasil, sem imaginar que abriria caminho para tanta gente jovem gostar de poesia. Esse haicai parece falar disso. De alguém que percorreu caminhos difíceis, mas que acreditava. E agora esse ‘um dia vai ser’ se realizou”, afirma.

Leminski é o homenageado da 23ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que começa nesta quarta-feira (30/07) e segue até o domingo (03/08). Apaixonado pela cultura do Japão, o escritor praticou judô (chegou a faixa-preta), aprendeu o idioma (falava seis línguas) e traduziu Yukio Mishima (além de James Joyce e Samuel Beckett).

“O haicai tem o seu fascínio. Não só pela leitura rápida, mas pela sacada inteligente”, observa o jornalista Toninho Vaz, autor da biografia Paulo Leminski – O Bandido que Sabia Latim.

Leminski não era o único “haicaísta” da família. A mãe de Estrela, Alice Ruiz, também gosta de produzir os tradicionais poemas japoneses de três versos e dezessete sílabas. Não por acaso, marca presença na antologia Haicais Tropicais, organizada por Rodolfo Witzig Guttilla. Na introdução, Guttilla explica que o gênero surgiu no século 7, atingiu seu apogeu no século 17 com Bashô e chegou ao Brasil no século 20 pelas mãos de Monteiro Lobato.

Outros gigantes da literatura brasileira, como Manoel de Barros e Mário Quintana, também flertaram com o gênero. Quintana chegou a publicar um livro só de haicais em 1994, o ano de sua morte. O volume foi organizado por Ronald Polito e ilustrado por Roberto Negreiros. Um deles é “Noturno”, do livro Velório Sem Defunto. Diz assim: “Aquela última janela acesa / No casarão/ Sou eu…”.

“Quintana era um inovador”, define Gustavo Grandinetti, autor de O Passarinho do Contra, em que biografa o poeta. “Tinha paixão por escrita sucinta, direta. Dizia que seu método era cortar sempre, até reduzir o texto à sua forma mais simples.”

Conto em miniatura

Mas o haicai não é o único exemplo de literatura minimalista. Há outros, como minicontos e aforismos.

Segundo Marcelo Spalding, doutor em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o miniconto está para a prosa como o haicai para a poesia. “Miniconto é um conto muito curto”, define. “Se [Júlio] Cortázar dizia que o conto vence por nocaute, o miniconto deve vencer por nocaute no primeiro soco do primeiro round.”

A origem do miniconto, prossegue Spalding, é atribuída ao escritor guatemalteco Augusto Monterroso. Em 1959, publicou O Dinossauro: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. Inspirado nele, Marcelino Freire desafiou 100 escritores brasileiros, como Moacyr Scliar, Dalton Trevisan e Lygia Fagundes Telles, a escrever histórias curtas de até 50 letras, sem contar título ou pontuação – o miniconto de Monterroso só tem 37! O resultado pode ser conferido em Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século. “Um bom miniconto é aquele que nada mais pode ser tirado e nada mais pode ser incluído”, explica Freire, o organizador da antologia. “Escrever curto é difícil, viu? Tem de dizer logo o que se quer e ir embora.”

Se Leminski é unanimidade quando o assunto é haicai, Trevisan é apontado como o precursor do miniconto no Brasil. Quem explica é Fabiana Faversani, a gestora de sua obra. Em Lincha Tarado, Meu Querido Assassino e Pão e Sangue, Trevisan intercala textos breves, separados por asteriscos e denominados como haicais, com narrativas longas. Esse processo culmina em Ah, É?, de 1994, livro que renova e recria a forma breve à sua maneira em 187 narrativas sem título, numeradas sequencialmente e chamadas de ministórias. Esse ciclo de fragmentação prossegue em 234 e em Pico na Veia e se fecha em Desgracida.

Em 2025, ano em que completaria um século de vida, Dalton Trevisan ganha antologia, Educação Sentimental do Vampiro, organizada por Felipe Hirsch e Caetano Galindo, e seis reedições de sua obra pela Editora Todavia. “A provocação que as ministórias carregam em si é um ‘pico na veia’ à apatia do leitor moderno pela capacidade de desconfortos e epifanias que geram a cada (re)leitura”, observa Faversani. “Num mundo tão acelerado, a brevidade é um grande atrativo.”

Outro gênero do “menos é mais” é o aforismo. “É uma pequena joia de sabedoria: curto e profundo, surpreendente e reflexivo”, sintetiza o jornalista Carlos Castelo, de Frases Desfeitas: Mais de 1000 Frases, Aforismos e Máximas Para Ler Antes de Morrer de Rir. “Faz pensar mais do que muito livro grosso.”

Se os haicais surgiram no século 7 e os minicontos no século 20, é difícil dizer quando surgiram os primeiros aforismos. Na Grécia, Heráclito de Éfeso já soltava algumas de suas pérolas, como “Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”.

“São brevíssimos apenas na forma. No conteúdo, encerram uma temporalidade longa”, pondera o filósofo Francisco Bosco, de Meia Palavra Basta.

Na hora de apontar seu aforista predileto, tanto Castelo quanto Bosco elegem Millôr Fernandes. Já o publicitário Ciro Pellicano, de Atingi a Sabedoria, Mas Só de Raspão, vai de Ambrose Bierce. “Por seu talento e coragem”, justifica. “Imagine o que ele faria hoje com padres vigaristas, políticos desonestos, chatos em geral…”

Em 1994, o desenhista Millôr Fernandes reuniu seus 5.142 aforismos em A Bíblia do Caos. No verbete dedicado ao tema, lembra da vez em que traçou um ensopadinho à mineira num boteco vagabundo da Urca com Sérgio Porto. Lá pelas tantas, o alter-ego de Stanislaw Ponte Preta pediu dois ovos fritos. E proferiu, na opinião de Millôr, um de seus aforismos mais simples e verdadeiros: “Em matéria de comida não há nenhuma porcaria que dois ovos em cima não melhorem.”

Pelo menos dois cronistas brasileiros lançaram coletâneas de aforismos: Carlos Drummond de Andrade, O Avesso das Coisas, e Paulo Mendes Campos, De Um Caderno Cinzento: Crônicas, Aforismos e Outras Epifanias. “Gostava tanto de aforismos que, em seu ‘Diário da Tarde’, jornal que imaginou fazer, criou uma seção dedicada a aforismos chamada ‘Coriscos na Floresta'”, explica Elvia Bezerra, organizadora da antologia De Um Caderno Cinzento. “É dessa seção o aforismo ‘Nada do que é humano me é estranho; a não ser a joie de vivre’ [alegria de viver], composto a partir de um verso de Terêncio, ‘Sou homem: eu não considero alheio a mim nada do que é humano'”.

Outras palavras

Em suas divagações, Bezerra indaga: “Quantos aforismos há, entranhados, em Grande Sertão: Veredas?”. Não só na obra-prima de Guimarães Rosa, mas em livros de Clarice Lispector, em peças de Ariano Suassuna ou em músicas de Milton Nascimento. Não por acaso viraram estampas de camisetas: “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome”, de Perto do Coração Selvagem; “Não sei. Só sei que foi assim”, de O Auto da Compadecida; e “Amigo é coisa pra se guardar”, de Canção da América.

“Durante a pandemia, a música Paciência, do Lenine, abraçou uma causa e ganhou o país. Gerou renda para toda a equipe de produção do artista”, recorda Vitor Vizeu, o diretor de marketing da Chico Rei. Por pouco, a marca de camisetas personalizadas não atribuiu a autoria de “Tenho medos bobos e coragens absurdas” a Clarice Lispector. Sua autora é Tati Bernardi. “A internet deixa a gente tão louca que eu mesma me falsifiquei”, brincou em 2013 Bernardi, autora de Depois a Louca Sou Eu, entre outros.

A literatura minimalista de Leminski, Trevisan e Millôr inspirou autores da novíssima geração, como Pedro Gabriel, de Eu Me Chamo Antônio, e Pedro Vinício, de Tirando Tudo Tá Tudo Bem. Se o primeiro encanta pelos guardanapos poéticos, como “Quem fica faz arte com as sobras de quem parte”, o segundo diverte pelos desenhos bem-humorados, como “Acordo cedo para me atrasar com calma”.

Em seu próximo livro, Antôniologia, Gabriel dedica o texto Uma Escuridão Transparente a Leminski. “Sua criação tem corpo de piada, alma de filosofia e ritmo de canção”, derrama-se o escritor e ilustrador. “Me ensinou que poesia pode ter profundidade e descontração.”

“A concisão pode ser poderosa, sim. Mas, não pode ser confundida com superficialidade”, ressalta Estrela Ruiz Leminski. “É aí que meu pai continua tão atual: ele era breve, mas nunca raso.” Vida longa aos textos curtos.