A pandemia de Covid-19, a guerra entre Rússia e Ucrânia e as mudanças climáticas formaram uma “tempestade perfeita” na agricultura mundial. Como consequência, houve disruptura de cadeias produtivas, aumento de preços dos gêneros alimentícios e da fome no mundo. Segundo o CEO da Korin Alimentos, Luiz Carlos Demattê Filho, essa tempestade evidenciou os problemas no sistema de produção — e também algumas possíveis soluções. A Korin atua há 30 anos na agricultura e pecuária orgânica e natural, e tem o frango e os ovos como carros chefes de seu negócio. Para o presidente da companhia, houve avanços da indústria de orgânicos no País — mas, por outro lado, há necessidade de uma mudança global na produção do que comemos.

Quais são as limitações para trabalhar com um modelo de produção natural e orgânico?
As cadeias de produção não são plenas, elas não estão completas. Então, quando se faz um processo de diferenciação, muitas vezes se exige um nível de rastreabilidade e de segregação, que traz custos associados. Por exemplo, a Korin só trabalha com milho orgânico ou que não seja geneticamente modificado. Esse milho tem que ficar em um silo separado e muitas vezes tem espaço ocioso, o que custa.

Como lidar com os custos da cadeia de produção orgânica?
No contexto objetivo, pagamos mais caro. Mas a grande estratégia é a conscientização. É mostrar ao consumidor o quanto isso é importante. Não é a gente fazer algo só para dizer que é diferente, só para querer atingir o consumidor mais especializado, mas é porque essa diferenciação para nós é importante e é a razão pela qual nós existimos. Se a gente acredita que o mundo melhora, é porque a agricultura melhora. Nossa motivação é essa e a estratégia é a comunicação. Colocar isso para o consumidor e fazer com que um número cada vez maior de pessoas compreenda e dê suporte para que isso continue acontecendo, até chegar em um ponto que conseguimos ter escala que faça com que o processo flua de maneira mais adequada.

Como fica essa estratégia em um cenário no qual o valor dos alimentos está muito alto e a escolha do consumidor é motivada pelo que é possível comprar?
Existem coisas que são mais importantes e que a pessoa passa a perceber como fundamental. Questões como saúde, bem-estar, capacidade de trabalhar, e os alimentos impactam isso. Fico pensando que o recurso a pessoa dá um jeito. E apesar de tudo isso a produção está crescendo, os sistemas orgânicos de produção estão se desenvolvendo, tem aparecido mais empresas. Não é um crescimento explosivo, de fato os fatores econômicos estão gerando constrições nesse processo, mas tem acontecido.

Existem bons programas de incentivo para a produção orgânica e natural?
Não como nós gostaríamos. O Brasil tem um agronegócio gigantesco, que movimenta uma dinâmica muito forte e poderosa, então concentram mais incentivos. Mas as instituições vêm se esforçando. Eu diria que, apesar disso tudo, o Brasil tem um arcabouço legal interessante, que envolve os sistemas orgânicos de produção, uma legislação complexa e boa, copiada por outros países, ou referenciada em outros países. O sistema orgânico de produção no Brasil, não é só uma questão técnica, de manejo, de metodologia. Mas sempre teve uma preocupação social e ambiental muito importante.

Qual é o maior gargalo?
Falta principalmente na questão fiscal. Compramos milho orgânico, que sai do produtor mais caro, porque ele tem mais trabalho para produzir. Então, digamos que estou trazendo milho orgânico do Mato Grosso do Sul. Essa mesma saca de milho convencional vai custar R$ 60. O orgânico custa R$ 80, mas os dois pagam a mesma porcentagem de imposto, de 8,3%. O que gera um efeito dominó na cadeia tributária. Mas se eu tenho um imposto que a essência dele é a questão da circulação da mercadoria, por que o Estado não poderia entender que esse milho orgânico traz benefícios ambientais, então ao invés de cobrar 8,3%, eu coloco proporcionalmente uma redução disso, de forma que ele não fique prejudicado em relação ao convencional? Não estamos nem pedindo para ser melhor, mas pelo menos não ficar prejudicado. Isso é uma coisa que não acontece.

A mudança recente de governo traz alguma esperança de mudança em relação a isso?
Esperança é a última que morre (risos). Mas se a gente considerar que ao longo de muito tempo também era essa perspectiva e isso não aconteceu, por que agora vai acontecer? Não é a perspectiva do governo, é a perspectiva da sociedade que traz a mudança.

A recriação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar tem algum efeito?
O MDA pode ter uma capacidade de absorver um pouco mais essas iniciativas, mas ele antes existia e não conseguia fazer isso. Então, se agora vai conseguir, é ótimo que o faça. A gente sempre tem essa perspectiva de que de fato aconteça, mas, por outro lado, tem a questão econômica. Se o governo, no final das contas, desempenhar bem economicamente, isso vai ajudar. Se ele não desempenhar bem, mesmo que ele tenha interesses em promover políticas mais favoráveis, isso não vai ser suficiente, porque o efeito econômico acaba tampando um pouco.

A pandemia aumentou o problema da fome e isso, no Brasil, que é um grande produtor de alimentos, é algo difícil de entender. Como a indústria deve agir para solucionar essa questão?
As indústrias em geral têm essa preocupação, mas os setores industriais foram induzidos a uma perspectiva de cadeias globais e todo mundo ficou dependente disso. A pandemia simplesmente mostrou que nós não podemos confiar nisso plenamente. Esse efeito da fome é um efeito muito pontual da disruptura das cadeias globais. Vivemos um cenário de uma tempestade perfeita. Começou uma pandemia, depois veio uma guerra, afetando países importantes nas questões de exportação de insumos agrícolas e de commodities.

O problema da cadeia de fornecimento está solucionado?
Não plenamente, tanto é que continua muito caro os grãos, e vai continuar caro. Na tempestade perfeita, além da pandemia e da guerra, tem o efeito ambiental, que tem gerado frustrações de safra em vários locais de maneira intercorrente no mundo todo. Tudo isso traz de fato uma inflação de alimentos importante. Eu acho que isso não vai ser resolvido com o fim da guerra, por exemplo. É algo mais sistêmico e tem a ver com o sistema de agricultura do mundo todo, que está ficando sobrecarregado. Estamos criando um caldeirão de problemas sanitários em animais, como a gripe aviária nos Estados Unidos e na Europa, a febre africana no suíno que afetou a China há dois, três anos de maneira dramática. Os alimentos estão sofrendo as consequências desse processo.

Como enxerga o futuro do setor?
No Brasil, por exemplo, temos a questão dos bioinsumos, de uma agricultura com uma base biológica mais poderosa. A Korin é pioneira nessa produção no País. Participei, enquanto presidente da Câmara Temática de Agricultura Orgânica, da elaboração de uma política pública, que tem recebido recursos através de fundos, como Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) e Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), e são importantes para o desenvolvimento de um ambiente institucional, produtivo e econômico na área de bioinsumos. Ainda não atingiu escala para ter visibilidade. Talvez leve mais cinco anos para ficar evidente e para que promova mudanças significativas no sistema de agricultura.