DINHEIRO ? O Brasil acaba de eleger um presidente de esquerda. O que se deve esperar do governo Lula?
ROLAND BERGER – A vitória de Lula tem grande significado simbólico e representa uma oportunidade histórica para o Brasil. Mais do que ninguém, até por suas raízes históricas, ele conhece as reais necessidades do povo brasileiro. É verdade que a economia tem sido vítima de um certo ataque especulativo, há também uma grande tensão no mercado financeiro, mas Lula tem todas as condições de vencer esses problemas. Tudo depende da força da sua coalizão política e da sua agenda de reformas.

DINHEIRO ? O que deve ser feito?
BERGER ? O Brasil precisa de uma boa equipe econômica, com os melhores quadros do País, e de um programa de governo consistente. Não dá para, ao mesmo tempo, zerar o déficit externo, reduzir a dívida interna, dar aumento aos funcionários públicos, respeitar o acordo com o Fundo Monetário Internacional, aumentar o salário mínimo e atender todas as demandas sociais. Nem tudo é compatível, pelo menos num primeiro momento. E agora no governo, não mais na oposição, o PT tem a grande chance de vencer seu teste de realidade.

DINHEIRO ? Isso significa que será um governo de sacrifícios?
BERGER ? Acho que, pelo menos nos primeiros meses, a palavra chave será austeridade fiscal. Lula deve assumir esse compromisso, que será muito importante para que o Brasil resgate sua credibilidade e volte a conviver com um ambiente de confiança externa.

DINHEIRO ? O que o Brasil pode aprender com outros países europeus que viveram a transição para governos de esquerda?
BERGER ? Lula deve olhar para a Alemanha, que é um caso típico. Quatro anos atrás, o primeiro-ministro Gerhard Schröder venceu as eleições liderando uma coalizão dos partidos verdes e socialistas, que não tinham qualquer credibilidade junto à comunidade empresarial alemã. Em pouco tempo, ele reuniu uma grande equipe ministerial, aprovou reformas importantes nos sistemas de impostos e de previdência e acaba de ser reeleito para um novo mandato.

DINHEIRO ? Reformas institucionais, como a independência operacional do Banco Central, ajudariam o PT?
BERGER ? Certamente. É uma forma de demonstrar que a estabilidade monetária será preservada a qualquer custo. No caso inglês, a primeira medida do primeiro-ministro trabalhista Tony Blair, quando chegou ao poder, foi dar independência ao seu banco central. Mas o Blair já era um homem mais liberal. O desafio de Schröder foi ainda maior. O fato é que, além de um banco central independente, o Brasil precisa de uma reforma tributária e de um novo modelo de seguridade social. São temas que estão na agenda de Lula, além das questões do emprego e da educação, que são centrais para o futuro do País.

DINHEIRO ? Lula teve uma educação formal limitada. Em que medida isso pode afetar o seu governo?
BERGER ? Não acho que seja o fator mais importante. Eu, pessoalmente, tenho muito mais respeito e admiração por pessoas que vieram de baixo e construíram suas biografias com o próprio esforço. Têm mais valor do que aquelas que simplesmente descendem de famílias ricas. No caso alemão, o Gerhard Schröder também veio de baixo, na pirâmide social. Ele é filho de uma faxineira e educou-se por conta própria. Uma origem simples não elimina a capacidade de reunir a melhor equipe técnica possível, com a maior bagagem acadêmica, para governar um país. Lula sabe do que o Brasil precisa e tem um espírito de liderança incontestável.

DINHEIRO ? A eleição do PT representa, de alguma forma, uma insatisfação dos eleitores com os efeitos da globalização no Brasil?
BERGER ? Não saberia avaliar, mas condenar a globalização é um erro. A integração mundial é o único caminho para que os países em desenvolvimento tenham acesso a novos investimentos, a tecnologias de ponta e a mais capitais externos. É um processo que gera empregos. A decisão da Volkswagen de se globalizar, tomada muitos anos atrás, foi positiva para o Brasil. O mesmo vale para a Mercedes-Benz, a Siemens e muitas outras multinacionais que vieram para o País. Não há como negar.

 

DINHEIRO ? Muitos aprovam os investimentos, mas condenam o aspecto financeiro da globalização. Restringir os fluxos de capital não poderia ser uma medida adequada?
BERGER ? Não acho que seja o caminho mais eficiente. A melhor forma de ficar imune às turbulências do mercado internacional é ter uma posição sólida no balanço de pagamentos, com grandes superávits comerciais e uma boa quantidade de reservas. O Brasil caminha rapidamente nessa direção.

DINHEIRO ? O Brasil tem quase US$ 10 bilhões de superávit e ainda vive uma crise cambial…
BERGER ? Mas isso tende a ser superado depois das eleições. A questão cambial, com a alta do dólar, é vista como um grande problema, mas traz em si a solução. O Brasil tem uma moeda que hoje incentiva muito suas exportações e coíbe as importações. Isso logo será percebido adequadamente pelos agentes econômicos. Os fundamentos são sólidos.

DINHEIRO ? Qual a sua visão sobre a crise nos mercados financeiros globais e a estagnação da economia mundial?
BERGER ? Acredito que, já em meados de 2003, a economia mundial começará a se recuperar. O fenômeno tende a acontecer tanto nos Estados Unidos quanto na Europa e isso será muito bom para o Brasil. Quanto aos mercados acionários, eu penso que as cotações já chegaram perto do seu piso. Houve muitos escândalos contábeis, que disseminaram uma crise de confiança. Mas a tendência é que, depois disso, haja uma recuperação do valor dos ativos. O risco que ainda permanece é a ameaça terrorista. Há uma possibilidade de novos ataques acontecerem nos Estados Unidos e nos países que, de certa forma, apoiam a guerra ao Iraque.

DINHEIRO ? Que impacto a guerra no Oriente Médio trará para os preços do petróleo e a economia global?
BERGER ? O impacto tende a ser limitado porque a própria retração da economia mundial impedirá uma alta maior do barril do petróleo. Mas um ataque americano ao Iraque pode desencadear uma reação que leve a novos atentados terroristas ao redor do mundo.

DINHEIRO ? Schröder se colocou de forma muita clara contra a guerra. Foi uma posição sensata?
BERGER ? Acho que ele tomou a decisão correta, mas não foi exatamente uma postura contra a guerra. O que ele disse foi que o objetivo do conflito não deve ser o de remover o presidente Saddam Hussein ou de mudar o regime político do Iraque. Deve ser, simplesmente, o de combater o terrorismo. Além disso, qualquer decisão teria de ser tomada sob a égide das Nações Unidas, e não de forma unilateral pelo governo americano.

DINHEIRO ? Num mundo em crise e sob ameaça de guerra, qual deve ser a prioridade de Lula na área comercial? É melhor unir-se aos Estados Unidos, no âmbito da Alca, ou à União Européia?
BERGER ? O Brasil tem dimensões continentais e deve sempre ter um enfoque multilateral em suas políticas comerciais. Não deve tornar-se excessivamente dependente do comércio com os Estados Unidos nem com a Europa. O importante é que Lula destaque para essa área seus melhores quadros, para que consiga negociar bons acordos com os dois mercados. Há muitos subsídios tanto nos Estados Unidos quanto na Europa prejudiciais às exportações brasileiras. Isso pode e deve ser combatido.

DINHEIRO ? O sr. estará no Brasil visitando uma série de clientes. Qual o estágio atual das empresas brasileiras em matéria de competitividade?
BERGER ? Quando a economia era fechada prevalecia a
ineficiência. Depois, houve uma grande transformação, com
enormes ganhos de produtividade. Mas as empresas brasileiras
ainda precisam ser mais eficientes na administração dos seus custos. Até porque os salários dos trabalhadores brasileiros, quando comparados aos de muitos países asiáticos, não são tão baixos como se imagina. Também acho que ainda falta uma certa dose de inovação industrial. Mas há exemplos em que a indústria brasileira segue os mesmos padrões de qualidade internacionais. É o caso, por exemplo, do setor de automóveis. Além disso, a geração de empreendedores e de executivos brasileiros, principalmente os mais jovens, é uma das mais competentes do mundo. São pessoas criativas e com vontade de realizar.

DINHEIRO ? Portanto, sua visão sobre o Brasil é
essencialmente otimista…
BERGER ? Claro. A crise é conjuntural e será superada. O Brasil tem recursos, tem gente qualificada e uma grande liderança política, que é o Lula. Basta querer fazer.

DINHEIRO ? O sr. já conversou com o primeiro-ministro Schröder sobre a vitória de Lula?
BERGER ? Nós sempre discutimos muito a questão brasileira, por duas razões. Schröder é um grande amigo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Além disso, há muitos interesses alemães no Brasil. Mas eu tenho certeza de que ele e Lula, duas pessoas que vieram de baixo, terão grandes afinidades pessoais. Se eu pudesse dar um conselho a Lula, eu diria: Vá à Alemanha e veja como um governo de esquerda rapidamente foi capaz de vencer a resistência dos conservadores, restaurar a confiança e avançar em questões sociais. Também estou certo de que Schröder fará de tudo para ajudar o Brasil nessa transição.

DINHEIRO ? Muitos dizem que São Paulo é a maior cidade industrial alemã fora da Alemanha…
BERGER ? Pela concentração industrial, a Grande São Paulo pode até ser considerada a maior base industrial germânica, mesmo contando as cidades alemãs.