Especialistas afirmam que, embora árdua, promessa do presidente é factível de ser executada em quatro anos de governo. País voltou a apresentar números alarmantes de insegurança alimentar nos últimos anosNo discurso que fez logo após o resultado das eleições de 2022, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reforçou o compromisso em acabar com a fome no Brasil. Em falas posteriores, o atual chefe do Executivo disse que a meta é que, ao fim de seu governo, cada brasileiro tenha pelo menos três refeições diárias.

O objetivo é um desafio para o país, que retornou ao Mapa da Fome da FAO/ONU em 2018. A inclusão ocorre quando mais de 2,5% da população de um país passa a enfrentar a falta crônica de alimentos. O dado é alarmante, principalmente pelo fato de que o Brasil havia saído dessa estatística havia apenas quatro anos, em 2014.

De acordo com dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSAAN), atualmente33,1 milhões de brasileiros e cerca de 15,5% dos domicílios do país não têm o que comer. No fim de 2020, esse número estava em 19,1 milhões, o que mostra o agravamento da situação durante a pandemia da Covid-19.

A promessa de Lula é também um retorno ao feito dos primeiros governos do Partido dos Trabalhadores, que criou o programa Fome Zero, em 2003, num conjunto de políticas públicas, como o Bolsa Família, a criação de restaurantes populares e o investimento em estoques de alimentos e na agricultura familiar.

No entanto, à época, foram necessários dez anos para que o Brasil saísse do Mapa da Fome, o que ocorreu em 2014, durante o governo Dilma Rousseff. Em 2004, o percentual de famílias em insegurança alimentar grave também era de 9,5%, bem menor que os atuais 15,5%.

Esses dados mostram que a corrida para garantir a segurança alimentar no país será árdua durante os quatro anos da gestão Lula. No entanto, segundo especialistas ouvidos pela DW Brasil, é, sim, possível tirar o Brasil do Mapa da Fome até 2026. Principalmente porque, de acordo com economistas e nutricionistas, a situação atual é reflexo de um esvaziamento de programas assistenciais e políticas públicas, que podem e devem ser retomadas com a expertise alcançada nos tempos do Fome Zero.

Retomada de políticas

Um dos idealizadores do programa de combate à insegurança alimentar durante o governo Lula, Walter Belik, que também é professor aposentado de economia da Unicamp e diretor do Instituto Fome, diz que o os programas que deram sustentação para a saída do Brasil do Mapa da Fome sofreram com os orçamentos baixos nos últimos anos.

Ele cita como exemplo o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003, que regula a compra de alimentos de pequenos produtores pelo governo para a doação para merendas, creches, escolas, hospitais e pessoas em situação de pobreza. Em 2021, o nome do programa foi alterado para Alimenta Brasil. A iniciativa, que chegou a ter orçamento de mais de R$ 1 bilhão em 2013, chegou a 2023 com R$ 2,6 milhões previstos no Orçamento Federal.

Segundo ele, o cenário é de “terra arrasada”, mas o fato de não ter havido desmonte das políticas, e sim esvaziamento orçamentário, pode ajudar na recuperação nos próximos anos. “Os programas estão aí, eles não foram extintos. Tem que se colocar dinheiro nos programas”, afirma Belik, que acrescenta que, para este ano, o PAA provavelmente não terá verbas, já aprovadas na Lei Orçamentária Anual de 2023.

Apesar disso, ele acredita que seja possível reverter o quadro atual nos próximos quatro anos. “Lógico que a conjuntura tem que ajudar, a economia tem que reagir, tem que gerar emprego”, afirma Belik. “Do ponto de vista jurídico e burocrático, é rápido para reativar os programas. Tem muito recurso que poderia vir para ajudar, porque as agências internacionais não pararam de colocar dinheiro no Brasil”, completa.

Órgão consultivo ligado à Presidência, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que tinha membros da sociedade civil que ajudam no desenvolvimento de políticas públicas, foi extinto pelo governo Bolsonaro. Presidente da Associação Brasileira de Nutrição (Asbran) e professora da UFPE, a nutricionista Ruth Guilherme diz que o colegiado já está sendo retomado e deve voltar com o governo Lula.

“Estamos em estruturação, o que é importante. O governo passado foi limitando todo esse movimento que dava essas políticas públicas, as duas grandes frentes que os governos Lula e Dilma tinham, que era garantir alimentos e garantir renda”, diz a nutricionista.

Para Ruth Guilherme, tirar o Brasil do Mapa da Fome nos próximos anos é possível. “Tínhamos um caminho, que foi encoberto. Agora precisamos retomá-lo. Deu certo uma vez, pode dar mais uma vez – e com mais rapidez. Temos pressa”, reforça ela.

Economia

O levantamento da Rede Penssan também deixa claro que a insegurança alimentar está diretamente associada à situação econômica das famílias. Segundo o estudo, quando há renda de um salário mínimo por pessoa, a fome praticamente desaparece nos lares. Por outro lado, nove em cada dez domicílios cuja renda per capita era menor a 1/4 do salário tinham algum grau de insegurança alimentar. A fome também é mais evidente nos lares em que o responsável está sem emprego (36,1%), é agricultor familiar (22,4%) ou possui emprego informal (21,1%).

Por trás disso, estão dois fatores: a falta de aumento real do salário mínimo, que desde 2018 só vem sendo reajustado, e o aumento da inflação dos alimentos, que foi de 57% nos últimos quatro anos – 30% maior que o índice geral, segundo dados da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe).

De acordo com Mário Rodarte, professor de Economia do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, no entanto, esses números não são irreversíveis, e as medidas anunciadas pela equipe de Lula estão no caminho certo. “Imagino que a remontagem dessas políticas públicas não deva demorar tanto tempo quanto no primeiro governo Lula, porque já há uma expertise. Isso conta muito na máquina pública, ter pessoas que sabem fazer. Esse é um elemento que vai contar para que isso seja feito rapidamente”, analisa o economista.

Rodarte diz que uma das medidas que impactaram diretamente no aumento do preço dos alimentos foi o esvaziamento dos estoques reguladores públicos de grãos, administrados pela Companhia Nacional de Desenvolvimento, a partir do governo de Michel Temer (2016-2018). O projeto de retomar os estoques regulares já foi citado por Lula, durante a campanha do ano passado.

O professor da UFMG diz que é preciso um controle nos preços de alimentos por serem altamente sensíveis a variações. “Se você tem uma sobressafra, ela derruba o preço e destrói a economia dos produtores. O contrário acontece quando você não tem safra. Você precisa, é factível”, diz ele, que acrescenta que a atual inflação, por não ser inflação de demanda, não deve se tornar algo “galopante”.

Já Walter Belik afirma que o problema no Brasil não é a falta de alimentos e que o país tem um mercado doméstico dinâmico, que garante a oferta. “Todos os diagnósticos de aumento de preöos mostram que não foi falta de alimentos, não é um problema de desequilíbrio entre oferta e demanda. É uma estrutura de mercado que é perversa, que não funcionou, muito concentrada nos problemas dos estoques de alimentos”, diz.

Ele cita ações fundamentais como investir nas merendas escolares, nos restaurantes populares, mas também na agricultura familiar, principalmente com o PAA, que garante o preço mínimo para os produtores.

“Grande parte da pobreza está no campo. Tem que dar o mesmo privilégio do agronegócio para a agricultura familiar. Tem que ter financiamento, assistência técnica – que foi descontinuada, precisa de internet no campo, uma antena de celular para garantir que ele possa acessar o mercado, saiba o preço”, ressalta ele.