No fim dos anos 1990, o grupo teatral paulistano Parlapatões encenou a hilária PPP@wllwshkpr.br. O nome foi uma junção das letras iniciais de Parlapatões, Patifes & Paspalhões (PPP) e o restante vinha de William Shakespeare sem as vogais. A obra dos americanos Adam Long, Daniel Singer e Jess Winfield foi traduzida pela genial Barbara Heliodora (1923-2015) e dirigida por outro mestre, Emilio di Biasi (1939-2020). A montagem, que teve merecido sucesso, era uma versão reduzida de todas as 37 peças de Shakespeare. Uma espécie de curso intensivo e expresso de toda a sua produção. Foi assistindo a essa peça que soube que nenhuma trama em Shakespeare escapa de três motivações: amor-sexo, poder-grana, fé-fanatismo. Em outras palavras, ninguém briga ou se alia sem que seja por amor, poder ou fé. Vale para tudo. Dilma e Temer romperam? Ou foi amor, ou foi fé ou foi poder. Bolsonaro e Tarcisio não se curtem mais? Ou é amor, ou é fé ou é poder. Sempre dará certo ler o mundo como Shakespeare escreveu o mundo.

O parágrafo anterior tem esta única missão: o reducionismo esclarecedor. Com isso colocado, vamos ao momento de País. O Relatório Focus da semana (divulgado segunda-feira, 5) mostra que o mercado prevê para 2023 o IPCA a 5,08%. Não somente é a terceira elevação semanal para o índice, como ele se mantém acima da meta de 3,25%, podendo variar 1,5 ponto porcentual para baixo (1,75%) ou para cima (4,75%). Isso, evidentemente, reflete nas previsões para Selic. Elas subiram de 11,50% para 11,75%. Há um mês estavam em 11,25%. E o PIB vai junto. Ele até variou positivamente na semana, de 0,70% para 0,75%. Mas ninguém vai negar que se trata de mais um pibinho. O Focus não mede, mas mesmo a redução da desocupação, índice que volta ao patamar pré-Dilma II, precisa de uma leitura mais cirúrgica, já a taxa de desemprego mostra degradação nos contratos e salários achatados. Um índice que mais engana do que explica.

Escapar dessa numeralha horrorosa vai depender, e muito, do que trama politicamente o governo Lula & Alckmin. E igual a uma trama shakesperiana, eles já compõem com Rodrigo Pacheco (chefe do Senado) e Arthur Lira (chefe da Câmara). Daria para ser diferente? A resposta é não.

O Parlamento brasileiro aparenta ser alimentado por benesses, rachadinhas, mensalinhos, mensalões, desvios ou corrupção pura. Há décadas. Mas o insuperável foi legalizar a safadeza por meio do Orçamento Secreto, que já suga por dia R$ 43 milhões desde 1º de janeiro de 2020, de domingo a domingo — mais de R$ 1,8 milhão por hora. Pode ser legal, jamais legítimo. Dinheiro sem controle, sem transparência, sem moralidade. Num País que grita faltar dinheiro. É nesse caldo que o novo governo negocia.

Como acontece nas peças de Shakespeare, Lula & Alckmin vão trair Pacheco & Lira que vão trair Lula & Alckmin. E nada disso, presume-se, será por amor-sexo ou fé-fanatismo. O que não se sabe (ainda) é quando tudo ocorrerá. E será o desfecho da trama (ganha governo?, ganha Congresso?) que vai responder se nossa economia reengata depois de nova década perdida.

Até aqui, há dois consensos por parte da plateia (a sociedade) e dos críticos (economistas e o setor produtivo). O primeiro é o de que os atores desse teatro do absurdo são velhos conhecidos e seus vícios e cacoetes de atuação são manjados. O segundo é que sem um negócio parecido com controle de gastos & endividamento, com a regra que for, a vaca tende a continuar no brejo. Uma espécie de ‘to be or not to be na responsabilidade fiscal’.

Entender este Brasil em que dinheiro público tratado por parlamentares passa a ser Orçamento Secreto e ninguém se indigna leva a outro inglês genial, senhor George Orwell. Nenhuma, a-b-s-o-l-u-t-a-m-e-n-t-e-n-e-n-h-u-m-a frase sobre política irá superar a inteligência e a precisão daquela que ele usou na página 6 de seu ensaio Politics and English Language, de 1946: “Political language is designed to make lies sound truthful” (numa tradução livre, “Linguagem política é feita para que mentiras soem como verdades”). Nada é mais atual. Nem nada é mais significativo a nossos tempos do que a quantidade de inverdades e falsidades permeando o noticiário político nacional, o que definirá nosso futuro econômico. E exatamente como ocorria no reino da Dinamarca, há algo de podre na republiqueta.

Edson Rossi é redator-chefe da DINHEIRO.