21/05/2010 - 6:00
Ainda não dá para soltar foguete (no bom sentido), nem abrir o champanhe. A paz no Oriente Médio está longe de ser assegurada, mas o Brasil, depois de envolver-se na semana passada numa polêmica negociação nuclear com o Irã, saiu maior do que entrou na briga das grandes potências com o regime dos aiatolás.
Na segunda feira 17, em Teerã, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyp Erdogan, selaram com o colega Mahmoud Ahmadi-nejad um acordo diplomático inédito, em que o Irã aceita transferir urânio levemente enriquecido para o exterior, em troca de combustível nuclear pronto para uso em tratamentos de combate ao câncer. É um dia para ser lembrado, qualquer que seja o resultado das futuras negociações entre as partes envolvidas no âmbito do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, a ONU.
Lula e Ahmadinejad: brasileiros e turcos vencem resistências do regime iraniano e fecham acordo em Teerã
Os líderes brasileiros e turcos conseguiram o que americanos, ingleses, franceses, alemães e russos tentaram há oito meses, em vão: o diálogo produtivo com o Irã. A ousadia de Lula ao interferir no assunto mais polêmico desde o dramático fim da Segunda Guerra Mundial, a segurança atômica, pode não resultar num acordo definitivo, dada a dura reação dos americanos.
Um dia depois da foto histórica entre Lula, Ahmadinejad e Erdogan, os Estados Unidos apresentaram nova proposta de sanções ao Irã para impedir que continue seu programa de energia nuclear e consiga desenvolver um artefato atômico. Mesmo assim, o brasileiro obteve repercussão mundial em seu intento e, respaldado pelo vigoroso crescimento da economia doméstica em tempos de crise global, assegurou o lugar do Brasil nas principais mesas de negociação internacionais.
O acordo foi uma vitória da diplomacia brasileira, diz Odair Dias Gonçalves, presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear. ?É a primeira vez que um país emergente atua numa negociação desse porte?, enfatiza. ?Gostem ou não da posição adotada pelo Brasil, o País tornou-se protagonista global e não dá mais para discutir questões de segurança internacional sem ouvi-lo?, diz Ruy Schneider, conselheiro de empresas, inclusive do setor nuclear.
Embora a disposição de Lula ao diálogo tenha sido louvada mundo afora, é claro que houve críticas à intromissão do Brasil em temas nos quais nunca exerceu papel de protagonista. Ahmadinejad não é considerado um interlocutor de confiança no Ocidente, pois já voltou atrás em acordos nucleares com a ONU e desrespeita suas sanções.
Barack Obama: endureceu o jogo e, apesar do acordo em Teerã, apresentou novas sanções ao país na ONU
E os Estados Unidos, histórico parceiro comercial e político do Brasil, estão sendo desafiados. Para Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington, os riscos da atuação do Brasil em Teerã não foram bem calculados: ?Não critico a ação. Foi construtiva, tentou encaminhar uma solução difícil. Mas não houve análise do custo-benefício.? Será?
Há muitas questões em jogo e não se pode subestimar a capacidade de Lula, hábil negociador desde os tempos em que era líder sindical, a medir riscos, benefícios e perdas potenciais de um acordo. O brasileiro usou sua intuição para sentar à mesa com Ahmadinejad e abrir espaço para uma solução negociada do impasse nuclear.
O Brasil abriu linha de crédito de 1 bilhão de euros para exportações de alimentos ao Irã
Quer, com isso, manter o clima positivo para o Brasil, que surpreendeu ao sair da crise com forte crescimento e é hoje um dos mercados regionais mais cobiçados do planeta, atrás da China e da Índia. ?A sigla Bric começa com B?, lembra o presidente da Câmara de Comércio de Istambul, Murat Yalçintas, que lidera missões de empresários turcos para fortalecer os negócios com o País.
Clotilde Reiss: prisioneira francesa é libertada no Irã como um “presente” para Lula
Nesta semana, 150 deles estarão em São Paulo prospectando parceiros comerciais na Expo Turquia, no Anhembi, em diversas áreas de negócios, de alimentos a manufaturas. O próprio primeiro-ministro Erdogan, parceiro de Lula no acordo com o Irã, é esperado para abrir o evento, primeiro passo para aumentar uma corrente de comércio que hoje não chega a US$ 2 bilhões.
O mesmo vale para o Irã. O comércio com o Brasil é pequeno, em torno de US$ 1,2 bilhão. Por enquanto. ?O Irã é um mercado importante. São mais de 72 milhões de habitantes e vários setores de interesse comum?, diz o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Miguel Jorge.
Embora haja muitas dúvidas sobre a duração e os efeitos futuros da atual política externa brasileira, não faltam motivos para justificar a mudança do papel relativo do país no jogo das grandes e médias potências. O Brasil passou de devedor a credor externo, empresta dinheiro ao Fundo Monetário Internacional, caminha para ser uma potência do petróleo e, por tudo isso, levanta a voz nos grandes temas globais.
Ao insistir no diálogo a todo custo com o Irã, inclusive pessoal ? ninguém sai ileso ao apertar a mão de ditadores, inimigos da democracia e violadores de direitos humanos, adjetivos atribuídos a Ahmadinejad ?, Lula venceu resistências e obteve concessões dos iranianos. Estes aceitaram em transferir parte de suas reservas de urânio enriquecido para a Turquia. Não resolve a questão, mas é um bom avanço na direção de uma solução negociada que impeça um ataque militar ao Irã.
Além de assinar o acordo, Ahmadinejad concordou com a libertação da francesa Clotilde Reiss, presa devido aos protestos contra sua eleição, no ano passado. Segundo ele, foi um ?presente a Lula?, a quem chamou de ?líder da nova ordem mundial?. O brasileiro, por sua vez, anunciou uma nova linha de crédito oficial, de E 1 bilhão, para financiar vendas de alimentos brasileiros ao Irã nos próximos cinco anos.
Os negócios do País com a Turquia, a segunda avalista do acordo, também devem aumentar. Atualmente, a corrente de comércio entre os dois países é de apenas US$ 1,8 bilhão. Membro da Otan e abrigo de bases militares americanas, o país é de extrema importância estratégica. Daí a relevância dos avanços do xadrez político de Lula no Oriente Médio.
Mudanças de porte na história levam anos para serem construídas e até mesmo aceitas por historiadores como divisores de águas. Para muitos, a Idade Média terminou com a queda do Império Romano e a invasão de Constantinopla pelos turcos, em 1453. E a Guerra Fria acabou com a queda do Muro de Berlim, em 1989.
O ex-presidente soviético Mikhail Gorbatchev ganhou um Prêmio Nobel da Paz por sua participação nesse processo. Mesmo sem ter feito nada grandioso, além de sua notável eleição, Barack Obama ganhou o Nobel no ano passado. Hoje, as dificuldades econômicas internas e as agruras militares no Afeganistão e no Iraque desafiam os Estados Unidos, talvez a última das superpotências a ceder espaço para o multilateralismo. Obama deixou bem claro, na semana passada, que não abre mão do poderio global.
O presidente americano telefonou pessoalmente para os chefes de Estado da Rússia e do Catar, visitados por Lula antes de chegar a Teerã, para defender as posições favoráveis ao aperto do cerco ao Irã na ONU. Na terça-feira 18, a secretária de Estado Hillary Clinton contra-atacou e anunciou o apoio de dois outros membros do Conselho de Segurança da Onu, Rússia e China, para apresentar nova proposta com sanções ao Irã.
O jogo é pesado. O documento não inclui embargos comerciais e propõe novas restrições a atividades que favoreçam o programa nuclear iraniano. O Brasil e a Turquia, que são membros não permanentes do conselho, reagiram com indignação. ?Temos, sim, uma chance de solução pacífica e negociada.
Aqueles que desprezarem essa chance assumirão suas responsabilidades?, bradou o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Lula, na versão paz e amor internacional, preferiu não comentar. Ele pode não ganhar o seu Prêmio Nobel da Paz. Mas certamente colocou o Brasil em novo patamar de influência mundial.
Colaboraram: Guilherme Queiroz e Rodolfo Borges