26/10/2025 - 7:00
Identificada como símbolo da pujança econômica, a bolsa de valores brasileira, a B3, registra um fenômeno atípico em tempos recentes. Nos últimos quatro anos, a instituição registrou a saída de 48 empresas, mais de 10% do total de empresas listadas, sendo que nove deixaram o pregão apenas nos últimos dez meses. A debandada deve alcançar a cifra de 11 companhias até dezembro, com as já anunciadas saídas da Gol e do Banco Pan. Dados da B3 indicam que, atualmente, existem 415 empresas listadas, número que se mostra significativamente inferior ao de um passado não tão distante.
No início da década de 1990, o Brasil chegou a ter mais de 600 corporações negociando seus papéis na então Bovespa (Bolsa de Valores de São Paulo). A saída dessas companhias da principal plataforma de captação de recursos do país é multifatorial, combinando elementos estruturais e conjunturais.
Um importante desafio citado por especialistas é a baixa confiança e o precário entendimento das dinâmicas do mercado de capitais, tanto para empresas, como uma forma de financiamento, quanto para investidores, como alternativa de construção de patrimônio de longo prazo. É uma construção cultural já conquistada em territórios onde o mercado de capitais está mais consolidado, caso dos Estados Unidos e China, os dois países que abrigam as maiores bolsas de valores do mundo – as americanas New York Stock Exchange (NYSE) e Nasdaq, e a bolsa chinesa de Xangai.
“O juro real alto praticado no Brasil acentua a fuga de capitais da renda variável, mas não é a causa raiz. O problema do mercado de capitais brasileiro é estrutural e multifatorial”, avalia o professor de finanças e mercados financeiros da Fipecafi, Rogério Paulucci Mauad.
Segundo ele, em mercados como o norte-americano, ou o do Reino Unido, mesmo quando os juros sobem, parte relevante da poupança continua aplicada em ações, fundos de pensão (responsáveis pelas aposentadorias dos trabalhadores) e ETFs, mantendo o suporte de liquidez à bolsa.
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Para se ter ideia das diferenças de tamanho entre os mercados de bolsas de valores, nos Estados Unidos o volume médio de negociação diário de ações chega a US$ 485 bilhões em 2025, um volume mais de 150 vezes maior que o da B3, com cerca de US$ 3 bilhões. Os dados são da consultoria Elos Ayta, pertencente ao consultor de dados financeiros Einar Rivero, e não considera os ADRs (recibos de ações de outros países listadas em bolsas americanas). Em mais um recorte comparativo, toda a bolsa de valores brasileira negocia um volume muito menor que as estrelas corporativas de bolsas americanas: sozinha, a Tesla, de Elon Musk, negociou volume médio de quase US$ 33 bilhões enquanto a Nvidia chegou a US$ 31 bilhões.
Paralelamente ao desembarque de empresas na bolsa brasileira, acrescenta Rivero, houve a realização de aberturas de capital – os chamados IPOs, na sigla em inglês. Em 2021, lembra, foram 46. Ainda assim, a bolsa assistiu à baixa do volume médio diário em aproximados 40% desde o início desta década, refletindo a combinação de juros altos, fuga de capital estrangeiro e menor apetite ao risco por parte dos investidores locais.
Visão da bolsa
A B3 não concedeu entrevista. Mas informou, em nota enviada à IstoÉ Dinheiro que, mesmo com as adversidades, enxerga um mercado mais maduro. Produtos mais sofisticados como fundos imobiliários, ETFs (fundos de índices) e BDRs (recibos de ações) têm avançado nas estratégias de diversificação dos investidores. “O mercado de renda variável mudou radicalmente nos últimos anos. Em 2020, o número de investidores somava 3 milhões de brasileiros. Hoje é o dobro disso”, informa a bolsa.
No Brasil, porém, a aversão ao risco ainda é culturalmente mais forte – existe a memória inflacionária do período pré-Plano Real e o histórico de crises cambiais e fiscais pelas quais o país atravessou, que levam os investidores de todos os perfis a privilegiarem segurança e retornos com previsibilidade, reagindo de modo mais brusco às mudanças na taxa de juros básica, a Selic, o que por fim molda o comportamento do investidor. O país também tem base baixa de investidores pessoa física, ou seja, menos que 5% da população investe na bolsa, volume concentrado em poucas regiões e faixas de renda.
Para efeito de comparação, no mercado norte-americano, pouco mais de 50% da população faz esse tipo de investimento. O baixo volume entre os brasileiros resulta tanto da capacidade de conseguir investir – para boa parte da população sequer sobra dinheiro para isso –, como da limitada educação financeira. As pessoas desconhecem alternativas de construir patrimônio a longo prazo investindo em companhias com potencial de crescimento.
A alta tributação e insegurança jurídica do ambiente brasileiro, por sua vez, são fatores que contribuem para a redução do apelo do investimento produtivo. A B3 tem, ainda, uma concentração setorial em commodities, bancos e empresas de serviços de gás, energia e saneamento (as chamadas “utilities” no mercado financeiro) – pouca diversidade e um conjunto de companhias sensíveis a ciclos globais, o que resulta em desempenho do volume negociado.
O vai-e-vem do cenário econômico brasileiro, bastante instável, constrói o perfil não só do investidor “macro dependente”, mas também das companhias, já que o desempenho das ações locais costuma estar fortemente vinculado ao ciclo fiscal e monetário. Os ciclos de alta e de queda nas taxas de juros, bem como os períodos de expansão e retração no Produto Interno Bruto (o famoso “voo de galinha” do PIB) costumam afetar as expectativas em relação ao comportamento do mercado e às principais variáveis macroeconômicas, disseram especialistas à IstoÉ Dinheiro.
Do ponto de vista empresarial, os juros altos desestimulam investimentos. “É um cenário que remunera muito os investimentos no mercado financeiro, mas também pune muito os tomadores de recursos”, explica o professor da FIA Business School, José Carlos de Souza Filho. Existe uma correlação entre a tendência de alta dos juros com a saída de empresas da bolsa, pontua Souza Filho. Entre os anos 2000 e 2005, deixaram a bolsa 114 empresas.
Efeito Selic
Ao final de 2005, existiam 381 companhias listadas, o menor patamar dos últimos 20 anos. Para efeito de paralelo, ao longo desse mesmo período, a taxa básica de juros da economia brasileira passou de 15,75% para 18% (e bateu os 26,5% em fevereiro de 2003). Ao final dos cinco anos seguintes, ou seja, em 2010, a taxa Selic caiu para 10,75%. E então o número de empresas listadas subiu para 471.
Recentemente, entre 2021 e 2025 (quando a bolsa perdeu 50 empresas), a taxa de juros passou de 9,25% para os atuais 15%.
“Os juros têm um efeito de longo prazo. Acredito que tenhamos alcançado um patamar elevado e que essa curva comece a se inverter. Certamente, isso incentivará o retorno das empresas à bolsa, só não vai acontecer do dia para a noite”, continua o professor da FIA.
Em mercados mais desenvolvidos, onde há cultura de investimento consolidada, o foco é via de regra microeconômico — ou seja, na geração de valor individual pela empresa. São observados com mais atenção o investimento, a inovação, a governança e a competitividade setorial. Ainda olhando para o “micro”, há pelo menos quatro fatores que encabeçam a decisão empresarial para deixar o mercado de capitais. O primeiro deles é o conjunto de processos de fusões e aquisições (M&A, na sigla em inglês) de grupos que buscam escala e competitividade no mercado.
Um exemplo é o retrato do setor de saúde. Levantamento da KPMG mostra que, entre 2003 e 2023, só neste segmento da economia, o Brasil registrou 817 transações. Rede D’Or, Intermédica, Dasa, DaVita, Hapvida, Fleury, Oncoclínicas, Sabin, Amil, Viveo e Hermes Pardini foram os destaques, e muitos deixaram de ter ações negociadas em bolsa.
A decisão estratégica da cúpula de uma companhia de fechar o capital e deixar a bolsa como meio de captação de recursos, por si só, já é o segundo fator. Essa escolha pode ocorrer por uma série de motivos, alguns inclusive já citados, como custo e insegurança jurídica, ou ainda a percepção do controlador de que suas ações não estão negociadas a valores justos, entre outros fatores.
Isso leva à chamada “deslistagem”, ou à saída da bolsa de valores, movimento que ocorre por meio da chamada Oferta Pública de Aquisição (OPA). Esse é o modelo que será seguido pela Gol, como anunciado neste mês pela companhia, e há alguns anos foi usado pela J&F para fechar o capital da Vigor Alimentos – tempo depois, a empresa foi vendida para o grupo mexicano Lala.
Neste ano, um caso relevante de OPA foi o da subsidiária brasileira da gigante francesa do varejo, o Carrefour. A companhia concluiu o fechamento de capital na B3 por meio da ferramenta no primeiro semestre de 2025. Embora tenha gerado debates, sobretudo envolvendo acionistas minoritários que consideravam o valor de remuneração baixo, a oferta foi aprovada pelos acionistas. O objetivo dos controladores foi o de simplificar a estrutura corporativa e dar mais agilidade à gestão das operações no Brasil, especialmente após a integração das aquisições do Grupo BIG.
Mais uma razão para desembarcar da B3 é a escolha por outra bolsa (maior e mais relevante) no cenário internacional. Esse foi o mote da Gol, controlada pelo grupo Abra. A empresa aérea, recém-saída de recuperação judicial (RJ) nos Estados Unidos, vai consultar seus acionistas para deixar a bolsa brasileira – paralelamente, o controlador anunciou a intenção de abrir capital nos Estados Unidos. A própria Gol chegou a negociar ADRs (recibos de ações) em bolsa do mercado norte-americano, mas foi obrigada pela Comissão de Valores Mobiliários do país (a SEC) a deixar as negociações por entrar em RJ em 2024.
Há um outro tipo de movimento. Recentemente, a JBS, gigante de proteínas fundada pela família dos irmãos Joesley e Wesley Batista, optou pela “dupla listagem”. Ou seja, passou a negociar os BDRs (recibos de ações, ou seja, não é o mesmo, trata-se de uma exposição indireta àquela ação) na B3, enquanto passou a listar seus papeis em Nova York em junho.
Por fim, as companhias saem da bolsa se “quebram”, lembram os especialistas. Foi o que aconteceu com a Saraiva e, há mais tempo, com a aérea Varig. Seja qual for o motivo, sair da bolsa traz consequências como menor visibilidade do mercado e menos opções para capitalização. De agora em diante, por ser a principal característica para a fuga, o peso macroeconômico deve ainda afetar a bolsa. A deslistagem de outras empresas é esperada. Paula Magalhães, sócia do escritório Demarest na área de companhias abertas, mercados de capitais e M&As, avalia que os juros elevados, a geopolítica global instável e casos recentes, como o da Ambipar – que acaba de pedir recuperação judicial e foi retirada, pela B3, de 16 índices da bolsa – deixam o investidor institucional muito mais reticente.
“No curto prazo, vejo mais empresas saindo do que entrando na bolsa. Os M&A’s com troca de ativos, como aconteceu com a BRF e Marfrig, ou operações estruturadas como o caso da Cosan, no entanto, podem ser uma vertente que movimente um pouco o mercado”, disse a advogada.
Para além dos aspectos macroeconômicos, que podem afetar os negócios da bolsa daqui por diante, há o preço das ações no Brasil. Estão baratas. Depois do boom de IPOs que marcou a bolsa entre 2021 e 2022, muitas empresas de menor porte vêm sofrendo com a desvalorização dos seus papéis – e pensam em encerrar seus respectivos ciclos dentro da bolsa. As companhias de maior porte têm uma visão um pouco mais estratégica.
Além dos papéis pouco valorizados, o que impacta o interesse pelo canal de capitalização, muitos controladores enxergam neste momento uma oportunidade de reduzir sua exposição à concorrência (isso ocorre no processo de entrega de dados para o mercado durante as divulgações de resultados trimestrais obrigatórias). “É constante na cabeça dos controladores o pensamento de fechar o capital”, diz, ainda, Paula, do Demarest.
A nova legislação local contribui para a debandada. Desde 1º de outubro ficou mais simples fechar o capital de uma empresa listada. A Resolução CVM 215, publicada em outubro do ano passado e em vigor desde o início do mês, estabeleceu um novo arcabouço regulatório para as OPAs. Ela moderniza as regras e introduz procedimentos mais simples, incluindo novas hipóteses de dispensa do laudo de avaliação em algumas situações, permitindo o uso de critérios alternativos como referência de valor justo.
Na prática, para determinar o valor justo das suas ações e então fazer uma oferta pública de aquisição, uma empresa era obrigada a contratar um laudo independente. Agora, o histórico de cotações, juntamente com alguns outros indicadores, passa a ser aceito como forma de determinar o preço da ação. “Essa flexibilização vai ajudar nesse movimento de saída de empresas da bolsa. O histórico de preços pode ser questionado judicialmente por minoritários que se sintam prejudicados, mas o laudo também poderia ser”, finaliza a especialista do Demarest.
Concorrência entre bolsas
Ainda que o ambiente econômico do Brasil não se mostre o mais favorável para o mercado de capitais, algumas iniciativas podem, futuramente, quebrar a hegemonia centenária da bolsa brasileira – hoje, a B3. Plataformas como a A5X, Base Exchange e BEE4 são alguns exemplos que se posicionam como prováveis concorrentes da B3 a partir de 2026. Mirando o espaço antes ocupado pela antiga BM&F (Bolsa de Mercadorias e Futuros), a A5X tem como alvo o mercado de derivativos e contratos futuros. A expectativa é entrar na fase de testes – um processo conduzido pelo Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o regulador do mercado de capitais –, entre o final de 2025 e o início de 2026. O objetivo é iniciar as operações comercialmente na segunda metade do ano que vem.
Mais parecida com a atual B3 é a Base Exchange, com sede no Rio de Janeiro, projeto mantido com o apoio financeiro do fundo árabe Mubadala (um dos principais fundos soberanos dos Emirados Árabes Unidos), e que detém a maior parte da participação na nova bolsa. A Base Exchange, que vai gerar efeito positivo ao estimular a competitividade nesse universo, acredita Claudio Pracownick, presidente da nova bolsa, aguarda a autorização da CVM e do BC para começar a operar. A estreia é esperada para o primeiro semestre de 2026. Já a BEE4 é uma plataforma que se posiciona como uma divisão de acesso para as pequenas e médias empresas que buscam captar recursos. Em abril, conseguiu licenças para operar como Balcão Organizado e Central Depositária.
