O som das panelas voltou a ecoar pelas principais cidades brasileiras. O mundo inteiro ainda chorava a tragédia com o avião da Chapecoense quando, na calada da noite, mais especificamente às duas horas da manhã da quarta-feira 30, a Câmara dos Deputados decidiu aprovar emendas que desfiguraram o projeto das Dez Medidas Contra a Corrupção, apresentado pelo Ministério Público Federal. O texto-base recebeu 450 votos favoráveis, um contrário e houve três abstenções. Mas, após uma série de emendas e destaques, sua última versão se transformou em uma retaliação ao Poder Judiciário.

A maioria das medidas consideradas chave foi abolida, como a tipificação do crime de enriquecimento ilícito e o confisco de bens obtidos de forma ilegal. Adicionalmente, os deputados incluíram uma emenda, apresentada por Weverton Rocha (PDT-MA) e aprovada por 313 congressistas, que sujeita juízes e promotores a seis meses de prisão em casos de abuso de autoridade. No mesmo dia, o presidente do Senado, Renan Calheiros, tentou aprovar um requerimento de urgência para votar o projeto na casa. A proposta, no entanto, recebeu apenas 14 votos e foi derrotada.

Na quinta-feira 1º, o juiz Sérgio Moro, responsável pela Operação Lava Jato em primeira instância, participou de um debate no Congresso sobre o assunto, em sessão presidida por Calheiros. A aprovação do pacote, do jeito que está, ameaça os avanços no combate à corrupção registrados nos últimos anos. O custo disso não é só moral, mas também econômico. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), a corrupção corrói 2% do PIB global, o equivalente a US$ 2 trilhões. O Brasil, infelizmente, é um exemplo negativo nesse quesito.

“Escândalos recentes de corrupção no Brasil ilustram como as investigações sobre o desvio de dinheiro público podem desestabilizar o sistema político”, diz o FMI, em um estudo publicado neste ano. “Isso aumenta a incerteza para os agentes econômicos e tem um impacto negativo no investimento e no consumo.” A percepção dos brasileiros é de que a corrupção faz parte do ambiente de negócios. Essa questão ficou clara em um estudo feito pela consultoria Ernst & Young (EY), com 2,8 mil executivos, de 62 países.

No Brasil, 90% dos entrevistados acreditam que propinas e subornos são comuns, maior percentual entre todos os países pesquisados. A impunidade é considerada como a principal incentivadora dos malfeitos. Para 100% dos participantes, processar executivos ajuda a evitar futuros casos de subornos. Ou seja, ao ver que seus pares estão pagando pelos erros, profissionais tendem a andar na linha. A percepção do que acontece no País, no entanto, é inversa: 70% dizem que, apesar de haver vontade por parte das autoridades em levar os criminosos à Justiça, é difícil obter uma condenação.

Não por acaso, o Brasil ocupa a 76ª posição, entre 168 países, no Índice de Percepção de Corrupção da Transparência Internacional, organização que combate a corrupção globalmente. A maior economia da América Latina encontra-se atrás de países como Ruanda, Senegal e El Salvador. A forma como a Câmara dos Deputados alterou as Dez Medidas piora esse cenário. Nem tanto pela desfiguração do projeto, que, aliás, não é um consenso dentro da classe jurídica – o ministro Gilmar Mendes, por exemplo, diz que a câmara “andou bem” ao retirar do texto itens que tratam de habeas corpus e aceitação de provas ilícitas.

A grande questão está nos motivos que levaram os nobres deputados a tomarem a decisão. “Foi uma retaliação contra a Lava Jato”, afirma Luis Claudio Martins de Araújo, professor de direito constitucional da faculdade Ibmec, do Rio de Janeiro. “O problema não é responsabilizar as autoridades públicas pelos seus atos, mas sim a falta de discussão com a sociedade.” Para Araújo, há, no País, uma cultura de descumprimento normativo. Essa cultura vinha mudando, segundo a EY. “As empresas já entenderam a nova realidade e estão adotando medidas efetivas para alterar a forma de se relacionarem com o poder público”, afirma José Compagno, sócio da consultoria e um dos autores do estudo sobre corrupção.

Isso se deve, diz Compagno, a três fatores: a entrada em vigor, em 2014, da Lei 12.846, conhecida como Lei Anticorrupção, que passou a permitir a responsabilização de empresas pelos atos de seus executivos; a Lava Jato, que colocou na cadeia pessoas antes consideradas intocáveis; e a grande publicidade dos fatos, que ajudou a mudar a percepção das pessoas em relação à impunidade. “Mas, qualquer ruptura nesse processo, pode significar um retrocesso”, afirma o executivo. Cabe aos nossos representantes tomarem a decisão de fazer a coisa certa. Doa a quem doer.

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Pega ladrão

O resultado da votação da emenda que estabelece punições ao Judiciário

Placar da votação:

* 313 a favor
* 132 contra
* 5 abstenções

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Propostas retiradas:
• Possibilidade do Ministério público de firmar acordos de leniência 
• Tipificação do crime de enriquecimento ilícito de funcionários públicos
• Criação do “reportante do bem”, para incentivar delações
• Medidas para dificultar a prescrição de penas
• Facilitação do confisco de bens obtidos por meio de crimes
• Estabelecimento de acordos entre defesa e acusações em crimes menores

Emenda retaliadora
• Pena de até seis meses de prisão para juízes e promotores que cometerem abuso de autoridade