18/12/2021 - 10:05
“Como a gente deixou chegar nesse ponto? Como a gente riu disso?”, questiona um personagem no longa “Medida Provisória”, uma distopia na qual o governo brasileiro ordena o “retorno” das pessoas negras para a África sob o pretexto de reparar o passado escravocrata.
Estreia do ator Lázaro Ramos na direção, o filme segue sem previsão de lançamento comercial, em meio a dificuldades com a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Foi exibido pela primeira vez no Brasil durante o 23º Festival Internacional de Cinema do Rio, com uma calorosa recepção.
A liberação para o público geral depende da Ancine, que há mais de um ano não dá retorno conclusivo aos recursos submetidos pela produção, segundo sua assessoria.
Desde que o imbróglio veio à público, a agência tem sido acusada de censura velada ao filme, em especial por opositores ao governo do presidente Jair Bolsonaro.
“Não vou dizer se é burocracia, ou censura, qualquer um dos dois é um entrave para a cultura”, declarou Lázaro Ramos em debate posterior a uma exibição no festival.
Em abril, Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares, de promoção da cultura afro-brasileira, pediu boicote ao longa, descrevendo-o como “pura lacração vitimista e ataque difamatório contra o nosso presidente”.
– ‘Sensibilizar’ –
A obra já rodou o mundo em festivais, com uma ótima recepção pela crítica e prêmios no Indie Memphis Film Festival, no Pan African Film (ambos nos Estados Unidos), no Festival de Huelva (Espanha) e no Festin Festival (Lisboa).
“O propósito do filme é sensibilizar. Quero que a pessoa assista, chore e pense que ela é capaz de fazer alguma coisa na luta antirracista. Quero que a pessoa sorria e se sinta forte”, disse à AFP o diretor, que apontou que a narrativa brinca com sua linguagem, passeando entre o drama, a comédia e o thriller.
No Festival do Rio, o elenco e a equipe viram pela primeira vez a reação do público brasileiro.
“Foi muito emocionante”, contou à AFP a atriz Taís Araújo. Ela interpreta a médica Capitu, casada com o advogado Antônio, papel do anglo-brasileiro Alfred Enoch, conhecido por “Harry Potter” e “How to Get Away with Murder”.
Sua personagem é uma “mulher negra que inicialmente não está a fim de falar sobre racismo, só quer se dar o direito de viver, mas a vida chama e ela precisa mergulhar” no tema, explicou.
“Medida” é uma adaptação da peça “Namíbia, não!”, de 2011, também dirigida por Lázaro Ramos e escrita por Aldri Anunciação, que também é ator e corroterista do longa.
– ‘Filtro’ –
A Ancine alega que o projeto está em “fase de análise do pedido de investimento para a sua distribuição em salas de cinema” e segue o “trâmite normal”.
A produção rebateu, detalhando que o que impede o lançamento é “a demora da Ancine em concluir os trâmites necessários para a troca de distribuidora do filme”, pedido feito no final de 2020.
A área técnica do órgão público não encontrou nenhum obstáculo e já deu sinal verde, mas ainda falta aprovação final de sua Superintendência de Fomento, segundo a advogada do filme.
Assim, a data de estreia já precisou ser alterada duas vezes. Por ter recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) investidos em sua produção, esclareceu ela, o primeiro destino comercial do longa precisa ser o cinema.
O caso lembra o ocorrido com “Marighella”, sobre o guerrilheiro Carlos Marighella, morto pela ditadura militar. Dirigido por Wagner Moura, o filme teve dois recursos negados pela Ancine em 2019.
Em julho do mesmo ano, Bolsonaro havia expressado o desejo de filtrar produções do cinema nacional.
“Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos, ou extinguiremos”, afirmou o presidente.
Atrasado ainda pela pandemia, “Marighella” – protagonizado por Seu Jorge, que também atua em “Medida”, no papel do jornalista André – acabou estreando em novembro deste ano.
Questionado sobre as dificuldades de se abordar temáticas sociais no Brasil, Lázaro Ramos ressaltou o papel da arte: “A gente não vai parar de debater, porque é um tema importante, é pensar como esse país foi construído […] A arte é muito poderosa, a gente não pode abrir mão desse lugar”.