Em reportagem recente veiculada no UOL, Gil Alessi aponta que a Vinícola Aurora possuía o selo “Melhores Empresas para Trabalhar” e que a Salton é signatária do Pacto Global da ONU. Ambas foram envolvidas em casos de trabalho análogos a escravidão. O texto destaca ainda que essas contradições expõem o mercado de certificações e suas limitações para acompanhar o desempenho das empresas certificadas. “Como uma empresa envolvida com trabalho escravo ostenta o selo ‘ótimo lugar para trabalhar’?”, pergunta o repórter. Ele tem razão em seu questionamento.

Imediatamente me recordei do caso Robeco, sobre o qual escrevi nesta coluna, e vale relembrá-lo. No final de janeiro, a gestora Robeco, sediada nos Países Baixos, colocou a SLC Agrícola, uma das maiores produtoras de grãos do Brasil, em sua lista de exclusão de investimentos após relatos de violações ambientais em suas fazendas. Entretanto, as ações da SLC na B3 seguem integrando o Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), o Índice Carbono Eficiente (ICO2) e o Índice Great Place to Work (IGPTW).

+Haddad sobre correção do mínimo: É a fórmula que deu certo durante os anos que governamos

Tanto o caso Robeco quanto os das vinícolas Salton e Aurora demonstram o esgarçamento dos instrumentos autopreenchidos de certificação. E a questão vai além. No caso do GPTW ou Great Place to Work (Melhores Empresas/Lugares para se trabalhar), deveríamos nos perguntar: melhores empresas para quem trabalhar? Empresas que apresentam níveis baixíssimos de mulheres negras representadas em seus quadros podem ser consideradas um ótimo lugar para mulheres negras trabalharem? Parece-me que não. A certificação deveria vir com uma ressalva do tipo: um ótimo lugar para alguns perfis de pessoas trabalharem. Sarcástico, talvez, mas muito mais próximo da realidade.

De outro lado, quanto ao esforço global quando as questões atinentes a mudanças climáticas, não entram na agenda a justiça ambiental, justiça social, o racismo ambiental e o impacto sobre as populações mais vulneráveis. A COP  27, realizada em novembro de 2022 em Sharm el-Sheikh, no Egito, apontou que 4 bilhões de pessoas em comunidades vulneráveis ​​ao clima devem ser impactadas. Mas, por aqui, nossa agenda verde segue sem um olhar preponderante quanto as pessoas, principalmente sem as comunidades mais vulneráveis, das quais os negros são grande maioria.

A Robeco deu uma lição necessária avançado para além dos checklists e formulários, buscando uma verificação mais abrangente. Há o papel e responsabilidade das empresas, mas seja para a construção de um ambiente de trabalho diverso e livre da discriminação, ou políticas e ações ambientais que considerem a realidade e a integralidade da sociedade brasileira, o dever primeiro de condução desta agenda é do Estado, através de políticas públicas, educação, coordenação, proposição, debate, fiscalização e atuação dos órgãos reguladores.

Tanto é verdade que os mercados europeu e americano já aplicam multas ou até fecham as portas para empresas que não praticam a devida diligência e um acompanhamento minucioso da sua cadeia, através da atuação de atores públicos e privados.

Não é um problema simples de ser resolvido, principalmente em cadeias extensas e complexas, mas precisamos trabalhar para parar de, por vezes, legitimar com selos e certificações discursos vazios ou desacompanhados de ações e compromisso efetivo, além de promovermos nas agendas o devido espaço para a participação da sociedade civil, fora das grandes bolhas empresariais.

Não haverá pacto global sem antes um pacto social, conscientização e consenso dos cidadãos locais. Todos os cidadãos.

Chegamos em um momento em que os checklists autopreenchidos precisam ser revistos, os compromissos públicos assumidos pelas empresas precisam de um melhor acompanhamento e as enormes contradições quanto aos ótimos lugares para se trabalhar, os quais por vezes sequer possuem em seus quadrados a mínima representação da sociedade em que atuam, precisam ser revistos.

Em toda crise há uma oportunidade de aprendizado. Que possamos de alguma forma evoluir nessas questões.