26/03/2008 - 7:00
Houve um tempo em que o Brasil era o país das grandes obras de construção pesada. A Usina Hidrelétrica de Itaipu (a maior do mundo), a Ponte Rio-Niterói (uma das mais mais longas do planeta), a Transamazônica (a estrada que pode ser vista do espaço) ? todas foram, ao mesmo tempo, símbolos do Brasil Grande, segundo a ditadura militar, e fontes de corrupção e peças de propaganda do milagre econômico, para seus críticos. Mas também foram empreitadas fundamentais para o desenvolvimento da infraestrutura do País, justamente a maior carência e o ponto de gargalo para o crescimento da economia brasileira atualmente. Foi esse momento, com seus personagens centrais alguns famosos, outros anônimos ?, que o empresário Wilson Quintella retrata em seu livro ?Memórias do Brasil Grande? (432 págs., Editora Saraiva), cujo lançamento acontecerá no próximo dia 26. Quintella recupera histórias curiosas e cruciais dessas obras, seja do ponto de vista técnico, seja sob o enfoque de negócios. ?O que me estimulou a escrever foi a tentativa de influenciar de maneira positiva as autoridades brasileiras neste momento em que se discute tanto a infraestrutura no Brasil, um setor que esteve esquecido nas últimas décadas?, diz Quintella.
Aos 82 anos, Quintella foi um observador privilegiado daquele período. Durante mais de 40 anos, trabalhou na construtora Camargo Corrêa, cujo crescimento vertiginoso ocorreu ao longo dos 20 anos em que as grandes obras de engenharia pipocavam por todo o território brasileiro. Em boa parte de sua carreira, sentou- se na cadeira de presidente, como braço direito de Sebastião Camargo, o dono da empresa e um dos pioneiros do setor. Conheceu de perto figuras históricas, como os presidentes da República Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e Ernesto Geisel, além de ministros, governadores e embaixadores. Tudo isso está presente em seu livro. Pode-se ler a obra de diversas formas. Uma delas é como documento histórico. Outra, como crônicas da vida cotidiana de um período marcante do País. Ou ainda como um compêndio de administração de negócios. O que amarra todas essas pontas são as grandes obras de engenharia e as histórias em torno delas, que Quintella, com bom humor e muita simpatia, recordou em entrevista à DINHEIRO.
E o tatuzão salvou o Metrô de São Paulo
NESSA OBRA, QUINTELLA conheceu toda a perspicácia de Sebastião Camargo. Vamos à história: o edital de concorrência para a construção do metrô previa um certo tipo de tecnologia, chamada cut and cover, para a escavação do solo. A uma semana da entrega das propostas, uma das associadas, uma firma inglesa, disse que não participaria. ?Por quê??, perguntou, atônito, Quintella. ?Se utilizassem aquela tecnologia de escavação, todos os prédios da rua Boa Vista, então centro financeiro de São Paulo, viriam abaixo?, responderam. ?Não vamos nos arriscar.? Desesperado, Quintella saiu à cata de alternativas. Encontrou- a num tal de shield, um equipamento moderníssimo. Mas não havia mais tempo hábil para refazer a proposta, assinar contratos, etc.
Voltou a São Paulo e aflito deu a notícia a Camargo. O empresário deu um tapa na mesa e, eufórico, gritou: ?Ganhamos a concorrência?. Quintella não entendeu. Camargo explicou. ?Vamos colocar um preço baixíssimo prevendo o uso do método cut and cover?, disse ele. ?Venceremos a licitação. Depois explicamos ao Metrô que a tecnologia é inviável e apresentamos a tal da
shield. O máximo que pode acontecer é eles insistirem com a cut and cover. Aí não assinamos o contrato.? E assim foi: a Camargo ganhou a concorrência e o Metrô, depois de muita relutância, aceitou a troca de tecnologia, embora os custos aumentassem. Em tempo: logo que o shield chegou ao canteiro de obras, um operário a rebatizou de ?tatuzão?. E o apelido ficou para sempre.
JK, Brasília e a frota de caminhões
A CONSTRUÇÃO DA ATUAL CAPITAL brasileira revelou o estilo empreendedor e informal daquele que é considerado o mais carismático presidente da República do Brasil, Juscelino Kubitschek. Ele próprio acompanhava o dia-a-dia das obras e interferia pessoalmente para resolver problemas. Num sábado à noite, perguntou a Sebastião Camargo: ?Soube que algumas obras estão atrasando. O que está acontecendo?? Camargo disse que faltavam caminhões. JK garantiu que o problema seria resolvido. O empresário telefonou na mesma madrugada para Quintella. ?Falei para o presidente que estamos sem caminhões. Será chato se ele souber que nem sequer encomendamos os veículos. Vá à Mercedes- Benz e compre 36 caminhões?, ordenou. Na segunda-feira, Quintella estava na porta da fábrica junto com os operários que entrariam no primeiro turno. Procurou o gerente comercial. O sujeito estava em reunião com o presidente da companhia. Quando saiu, ouviu de Quintella o pedido de compra. ?Que coincidência?, disse e mostrou um telegrama de JK pedindo prioridade para a Camargo. O gerente foi a uma janela e mostrou 15 caminhões no pátio. ?São seus. Como quer pagá-los? Pode ser à vista, mas também podemos parcelar?, disse. Quintella se recorda com nitidez da ocasião. ?Fiquei mais aliviado, mas só até saber que os prazos eran de 30, 60 e 90 dias. E já era um grande favor. Aqueles caminhões estavam vendidos e pagos à vista. Seriam entregues à Camargo Corrêa somente para atender ao pedido presidencial.? Era muito dinheiro e a empresa conseguiu um empréstimo junto ao Banespa. Mas, para isso, Sebastião Camargo levou o presidente do banco a Brasília e lá o apresentou a JK. ?O banqueiro saiu do encontro entusiasmado com JK. O pagamento da dívida foi facilitado.?
Faltou a hidrovia São Paulo-Buenos Aires
QUANDO O EDITAL DE LICITAÇÃO foi divulgado, Quintella e sua equipe concluíram que nenhuma construtora tinha condições de tocar o obra sozinha. O executivo levou a sugestão ao governo: Por que não fazer um consórcio com as cinco concorrentes? O Ministro das Minas e Eenrgia recusou. O princípio da concorrência pública deveria ser respeitado. Tempos depois, quando abriram as propostas, as mesmas autoridades decidiram que o correto seria que todas as empresas se juntassem e construissem juntas a maior usina hidrelétrica do mundo. ?Justamente o que eu havia sugerido?, diz Quintella. Houve idas e vindas na obra. Uma delas dizia respeito à construção ou não de eclusas, permitindo a navegabilidade do rio Paraná. Ninguém decidia. Até que o assunto chegou ao presidente Ernesto Geisel. Cansado da discussão, determinou: ?Deixem a eclusa para lá?. Se tivesse sido feita, afirma Quintella, hoje seria possível sair de barco de São Paulo e chegar a Buenos Aires.
Os personagens, segundo Quintella JUSCELINO KUBITSCHEK ? ?Era um sujeito amabilíssimo. Certa vez, encontrei-o (ele era governador de Minas Gerais) em uma solenidade no Rio Grande do Sul. Minha mulher, Sônia, perguntou-lhe se ele realmente gostava de cantar. Ele virou e perguntou: ?Tem um piano nesta casa?? Não tinha. ?Tem violão?? Também não. ?Então, canto assim mesmo.? E soltou a voz em várias canções ? inclusive, Peixe Vivo, que ele adorava. Outra vez, numa vistoria às obras de Três Marias, um equipamento se rompeu e a água começou a invadir o túnel. Foi uma correria generalizada. O Juscelino saiu em disparada. Era rápido, o rapaz. Aliás, rápido em tudo, pois tempos depois proibiu empresas estrangeiras de atuarem sozinhas no Brasil ? a empreiteira responsável por Três Marias era estrangeira.?
ADHEMAR DE BARROS ? ?Passou à história com uma imagem injusta: de tirar privilégios pessoais graças ao governo. A sociedade não entendia suas obras, pois eram avançadas para aquele tempo. Quando foi visitar as obras da Usina de Jupiá e viu aquela multidão de operários na mudança de turno, perguntou: ?Todos são empregados por nós?? Respondemos afirmativamente. E ele chorou de emoção. Mas era também provocador. Numa outra visita a Jupiá, o protocolo determinou que ele, como governador do Estado, se sentaria ao lado do presidente Castelo Branco. Ele se recusou: ?não vou sentar ao lado daquele chato?. Só depois que o constrangimento tomou conta do ambiente, ele mudou de idéia.? ERNESTO GEISEL ? ?Tinha a postura de um general prussiano. Era muito reservado, mas, com o passar da conversa, tornava-se simpático. Em uma visita a uma obra, eu estava explicando alguns pontos de um projeto. Ele não parecia muito interessado. Apenas ouvia. Alguém o chamou e ele se afastou de mim. Pensei que tivesse aproveitado a oportunidade para encerrar o diálogo. Mas, logo depois, voltou e retomou a conversa justamente do ponto onde havia sido interrompido. Queria saber em detalhes o que estava sendo feito.? |
E Camargo quase bate em Andreazza
TINHA TUDO PARA DAR ERRADO. A Camargo Corrêa perdeu a licitação por causa do preço, mais alto do que o do outro participante. E ainda ouviu uma ironia do então ministro dos Transportes Mario Andreazza: ?Vocês fizeram uma proposta para construir duas pontes, uma para vir, outra para voltar?. Um ano depois, com as obras já iniciadas, a empresa foi convocada para uma reunião com o governo. A Camargo assumiria a empreitada porque as coisas não andavam bem com a outra construtora ? o cronograma estava atrasado e acidentes haviam provocado a morte de diversos operários. Mas, na reunião para acertar a transferência, o gênio forte de Andreazza voltou a se manifestar. Lá pelas tantas, ele dirigiu- se a Sebastião Camargo e disse: ?O senhor mais parece um criador de galinhas do que construtor?. Camargo levantou- se e foi em direção ao ministro, que também avançou. Uma intervenção de Delfim Netto, presente à reunião, impediu que os dois se estapeassem. Apaziguados os ânimos, Delfim assumiu a coordenação da obra junto à Camargo Corrêa. O desafio, então, era concluir a ponte em dois terços do prazo original. Nem sequer as fundações estavam prontas. Mas, no dia 4 de março de 1974, o presidente Emílio Garrastazu Médici atravessou a ponte em um carro aberto, exatamente no dia marcado para a inauguração e apenas vinte meses depois da Camargo assumir a empreitada.
Transamazônica, a floresta de problemas
FOI TALVEZ A MAIS POLÊMICA obra já realizada na história do País. Rasgar a Floresta Amazônica de leste a oeste com uma estrada cheirava a megalomania. O governo dizia que ela seria visível do espaço, dada sua magnitude. Os críticos respondiam que ela ligaria o nada a lugar nenhum. Até hoje, há controvérsias. Quintella, por exemplo, garante que, sem a Transmazônica, o Projeto Carajás não existiria. O certo é que se tratou de uma ?epopéia na selva?, como diz Quintella. Não havia um levantamento topográfico da região. A chamada ?planície amazônica? não era exatamente uma planície, já que havia acentuadas elevações e depressões que a mata fechada encobria. O terreno, com uma camada de um metro de húmus, era fofo e afundava com facilidade. O meio de transporte era um jipe puxado por dois tratores D-8. Quintella conta uma passagem: ?Saímos do acampamento por volta das nove horas da manhã para percorrer um trecho de dez quilômetros. Os tratores atolavam constantemente. Um precisava puxar o outro e juntos rebocavam o jipe. Esse curto trajeto acabou no fim do dia, ao cair da noite.? A floresta era tão densa que era impossível enxergar pouco metros adiante. Certa vez, três operários saíram do acampamento para dar uma volta na selva. Perderam-se. Os companheiros ouviam seus gritos, e eles também escutavam as respostas do pessoal no acampamento. Estavam perto, portanto. Mas não conseguiam se encontrar. Tiveram que esperar a noite chegar e se orientar pela luz de uma fogueira. Apesar disso, a Camargo Corrêa entregou os 400 quilômetros encomendados.
Cumbica, o aeroporto que quase não sai
VOCÊ, COMO A GRANDE MAIORIA das pessoas, acha que apenas dois aeroportos (Congonhas e Cumbica) são insuficientes para a demanda da maior cidade da América do Sul? Pois saiba que havia quem propusesse que o aeroporto de Cumbica não fosse construído. Em meados da década de 70, o Ministério da Aeronáutica não era simpático à idéia. Eles achavam que a ampliação de Viracopos, a mais de 100 quilômetros da capital, seria a solução para desafogar Congonhas. Felizmente, a proposta não prosperou e a Camargo Corrêa, em parceria com a Constran, do empresário Olacyr de Morais, tocou a obra. O problema é que, no final dos anos 70, o milagre econômico já dava sinais de esgotamento. Os pagamentos atrasavam, mas a empreiteira não diminuía o ritmo das obras. ?Sabíamos que, se isso acontecesse, Cumbica perderia a prioridade?, recorda Quintella. Ele acredita que a rivalidade bairrista entre São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro tenha influído negativamente no planejamento da malha aeroportuária do País. Os dois Estados ganharam aeroportos acima de suas necessidades. ?Confins e Galeão possuem um movimento de passageiros pequeno diante de seu porte e em Cumbica acontece o contrário?, diz ele. Quando deixou a Camargo Corrêa, em dezembro de 1984, Quintella fez um pedido: participar da inauguração do Aeroporto Internacional de Guarulhos, que aconteceria um mês depois. É claro que foi atendido.