Criado em 1898 pelo artista e cartunista francês O’Galop para a Exposição Internacional de Lyon, o Bibendum é um dos mais antigos mascotes do mundo corporativo. Conhecido no Brasil como boneco da Michelin, ele se tornou o ícone da companhia francesa de pneus mundo afora. Seu nome significa, em latim, “bebamos agora”. Como beber combina com o objetivo do tradicional Guia Michelin de restaurantes, mas não com dirigir, a expressão ganhou na empresa um novo entendimento com o passar das décadas: “Devore os obstáculos”.

Seja traduzido como beber ou devorar, a realidade é que o Bibendum e a Michelin têm hoje desafios sóbrios a superar. Um dos maiores — se não o maior — é a revolução verde. Assim como toda a indústria de pneus, a Michelin é uma máquina de gerar resíduos. No ano passado, produziu 195 milhões de unidades. Isso mais do que explica a obsessão da empresa em substituir petróleo e outros insumos químicos de seus pneus e ter 40% da matéria-prima originada de fontes sustentáveis até 2030. A meta é chegar a ambiciosos 100% até 2050, objetivo desafiador para uma empresa que hoje tem índice de 30% de materiais renováveis ou recicláveis em seus pneus.

ÍCONE DA INDÚSTRIA O mascote criado no final do século 19, conhecido no Brasil como boneco da Michelin, permance como símbolo da centenária companhia francesa. (Crédito: Collection Roger-Viollet/Roger-Viollet via AFP | Photo12 via AFP)

Outro desafio, não menos importante, é a estratégia de diversificação da companhia. A iniciativa tem duas ofensivas sincronizadas, batizadas de “around tires” (em torno dos pneus) e “beyond tires” (além dos pneus). A primeira consiste em expandir investimentos em negócios diretamente relacionados a pneus, como decomposição de borracha para reciclagem das matérias-primas. Em 2020, ao desembolsar 3 milhões de euros por 20% do capital da sueca Scandinavian Enviro Systems AB, a Michelin se tornou sócia da mais avançada empresa em reutilização de componentes do mundo. O plano é transformar a empresa nórdica em uma gigante global de reciclagem, com operações na Ásia, Estados Unidos e América do Sul (os locais ainda estão em estudo).

É dentro do plano “beyond tires”, em atividades sem conexão direta com o mundo dos pneumáticos, que estão as estratégias mais curiosas da Michelin. Sem abrir mão da expertise centenária com a borracha, a companhia está investindo pesado em empresas de healthtech (com a produção de stents para cirurgias cardíacas), acessórios hospitalares, insumos para o setor moveleiro e até na indústria naval, fornecendo velas infláveis e retráteis. O Wisamo, projeto inaugurado no começo do ano passado, pode ser adaptado em grande parte dos navios existentes para ajudar a reduzir o consumo de combustível.

UM FUTURO RENOVÁVEL Os pneus da marca terão o índice de matérias-primas renováveis ou recicláveis aumentado dos atuais 30% para 40% até 2030. A meta é chegar a 100% em 2050, liderando a revolução verde na indústria global de pneumáticos. (Crédito:C.BERGER)

Há ainda o Michelin AirProne, um kit de almofadas de ar lançado em 2022 e pensado para pacientes que sofrem de síndrome respiratória aguda grave (SRAG). A novidade foi desenvolvida em parceria com o hospital da Universidade de Amiens, no Norte da França, e consiste em um sistema que melhora os sinais vitais respiratórios e aumenta o conforto de pacientes deitados de bruços. A proposta é corrigir a distribuição da pressão causada pelo peso do corpo e garantir um melhor posicionamento do paciente. O tecido especial drena secreções e reduz a transpiração. A fabricação é da AirCaptif, startup francesa adquirida pela Michelin em 2021.

De volta aos pneus. Composto por mais de 200 materiais diferentes em seu interior, sua produção demanda o uso de colas — ponto sensível na questão da resistência e durabilidade do pneu, especialmente em países de clima quente e asfalto de temperatura escaldante. Por isso, a Michelin criou a subsidiária ResiCare, especializada no desenvolvimento e produção de adesivos de alta performance. Desde 2018, a subsidiária opera em parceria com a Allin, companhia francesa especializada em painéis de compensado de madeira. Foi dessa operação conjunta que nasceu o R’PLY, um compensado que utiliza resina da ResiCare, ambientalmente mais amigável. A empresa controlada pela Michelin tem sede na Polônia e desenvolve produtos para que a controladora possa substituir, até 2025, mais de 80% dos seus adesivos normais usados no reforço dos pneus por um produto livre de substâncias nocivas à saúde e ao meio ambiente.

DO ASFALTO PARA O MAR Apresentadas no começo do ano passado, as velas infláveis permitem a navios redução do gasto de combustível. (Crédito:Divulgação)

SINERGIAS Mas o que a cola, a madeira, o kit de almofadas, a vela de barco e o stent para o coração tem a ver com a Michelin? Tudo, segundo o presidente mundial da companhia, Florent Menegaux. “Na nossa visão, são negócios complementares e em sintonia com a indústria de pneus”, afirmou o executivo à DINHEIRO, em evento da companhia na Itália. “Não estamos mudando de área, mas expandindo nossas frentes de atuação dentro de um contexto de ESG. Estamos adicionando atividades onde nosso profundo conhecimento tecnológico pode ter um impacto”, afirmou o CEO. Traduzindo: stent é composto de borracha de alta tecnologia. As velas para navios são de borracha. E a mesma cola que gruda as camadas de aço, lona e borracha de um pneu também cola plásticos e madeira para mobílias. Ou seja, tudo que a Michelin já sabe fazer. “No caso de health, não temos a pretensão de ser uma companhia de saúde, mas estamos sempre desenvolvendo moléculas que podem ajudar a comunidade médica”, afirmou.

A estratégia de diversificação da Michelin é um movimento inteligente para reduzir a dependência do mercado de pneus, segundo o especialista e consultor automotivo Tiago de Bortoli, sócio da consultoria Autoinsp. Os pneus ainda respondem por 95% das receitas do grupo francês. No ano passado, as vendas alcançaram 28,6 bilhões de euros. O plano de Menegaux é que a fatia de 5% de outros negócios seja ampliada para 25% do faturamento até 2030, e que a receita total cresça em 10 bilhões de euros nesses sete anos. “Não por este ser um mercado ruim, ou estar em decadência. Muito pelo contrário. O mercado automotivo e de pneus cresce todo ano e representa cifras trilionárias”, afirmou Bortoli. “Mas, frente às boas práticas da nova economia, a expansão desse mercado também aumenta o risco institucional de uma companhia ultranichada.”

CORAÇÃO RENOVADO A Michelin decidiu investir em stent cardíaco para aproveitar sua expertise com moléculas de alta resistência em materiais de borracha. (Crédito:Divulgação)

A meta da Michelin de ampliar a fatia dos novos segmentos no resultado total do grupo já está em curso. No ano passado, as operações around e beyond tires contabilizaram alta de 22% nas vendas. O crescimento do grupo em 2022, próximo a 5%, é a média anual planejada para a companhia até 2030. Se der certo, pode alcançar um volume financeiro de 42,2 bilhões de euros em vendas até lá.

A aquisição de empresas e de produtos nos setores e nos mercados de interesse, agregando novas tecnologias e inovação ao grupo, demonstra que a Michelin não está disposta a perder oportunidades de negócios e ampliar horizontes sem mudar sua essência interna, na avaliação de Bortoli. “As oportunidades em setores distintos fortalecerão ainda mais o nome da companhia, mesmo que complementares, e afetarão o negócio principal positivamente”, disse o especialista. “Além disso, vai ajudar a empresa a se tornar mais sustentável, utilizando a força e a confiança atreladas ao seu nome.”

PRODUÇÃO GLOBAL 4.0 As principais fábricas da Michelin no Brasil e no mundo, como a de Cuneo, na Itália, têm recebido investimentos para a produção de pneus cada vez mais sustentáveis e tecnológicos. (Crédito:Divulgação)

FOCO NO BRASIL Dentro do plano de aquisições e diversificação, o Brasil é parte essencial, segundo Menegaux. Nos últimos anos, a Michelin colocou para rodar uma extensa estratégia de incorporação de empresas. Em 2014, comprou a Sascar, líder brasileira na gestão digital de frotas e no rastreamento de mercadorias durante o transporte. Em 2016, adquiriu 100% do capital da Levorin, fabricante de pneus para motos, com sede em Guarulhos (SP). Dois anos depois, comprou a mineira Seva, em Betim, especializada em tecnologias automotivas. Naquele mesmo ano, adquiriu a Camso, empresa de origem canadense com fábrica no Rio Grande do Sul, líder mundial em esteiras para máquinas agrícolas e pneus para empilhadeiras. Em 2020, incorporou a ConVeyBelts, fabricante paulista de correias transportadoras para mineração, siderurgia e logística.

ONDE NASCE A BORRACHA No Brasil, a Michelin beneficia borracha natural de plantações de seringueiras na Bahia e no Espírito Santo (Crédito:Divulgação)

Como em toda estratégia de qualquer companhia gigantesca e centenária, o plano de diversificação da Michelin embute riscos, segundo Heder Bragança, especialista em M&A e CEO da consultoria Equity S/A. Ele avalia que a estratégia da Michelin precisa ser executada com cautela, mantendo o equilíbrio com seu negócio principal e a preservação da reputação no segmento de pneus. “A empresa precisa ser ágil e inovadora para acompanhar as mudanças e garantir seu sucesso em longo prazo”, afirmou. “Mas na entrega ao cliente não pode haver queda de qualidade.” Para isso, Bragança diz que a empresa não pode crescer demais a ponto de ter conflito operacional. “O foco não pode ser só a receita, mas os custos todos.”

A julgar pela performance da Michelin em seus 135 anos, perder qualidade durante o processo de diversificação não será um problema. O Bibendum parece pronto para devorar os obstáculos.

ENTREVISTA: Florent Menegaux, presidente mundial da Michelin
“Com a ajuda do mercado brasileiro nossas novas frentes de negócios passarão de 5% para 25% da receita em sete anos”

Joel Saget/AFP

Qual a importância do Brasil nos planos globais da empresa?
Sob diversos aspectos, o Brasil é peça-chave nas estratégias da companhia. Temos uma relação de longa data com o País. Nosso primeiro escritório foi aberto na década de 1920. Então, conhecemos muito bem as características e o mercado, assim como a Michelin é muito bem reconhecida pelos consumidores. Do ponto de vista dos negócios, temos um imenso potencial de crescimento nos próximos anos.

Por quê?
O Brasil é uma potência em temas que são prioridades para nós, como transição energética, redução do impacto ambiental, substituição de matérias-primas por alternativas sustentáveis e mesmo nas possibilidades de diversificação em áreas estratégicas para o grupo. E o Brasil é um mercado fundamental não só pela questão do mercado, mas na parte das pesquisas.

Essa diversificação pode ser entendida como aquisições?
Sim. Estamos abertos a oportunidades de aquisições que tenham sinergia com nosso negócio e com nossa visão de futuro. Olhamos sempre para potenciais aquisições ou compra de participação em empresas no mundo, mas o Brasil é um mercado ao qual sempre olhamos com especial atenção. Já morei no Rio de Janeiro alguns anos atrás. Apesar de ter esquecido muito do português, não me esqueço do dinamismo da economia e do potencial que o País tem em geração de oportunidades. Com a ajuda do mercado brasileiro nossas novas frentes de negócios passarão de 5% para 25% da receita em sete anos.

A diversificação da Michelin é a forma que a empresa encontrou para driblar a concorrência com as marcas chinesas?
Não temos receio da concorrência chinesa. Ao contrário. Produzimos na China e algumas fabricantes chinesas são parceiras nossas no desenvolvimento de novas tecnologias e em pesquisa. Vou contar uma história pessoal para exemplificar. Tempos atrás, em uma viagem à China, comprei um brinquedo fabricado lá. Menos de 30 minutos depois, o brinquedo estava quebrado. Fiquei muito desapontado. Chateado. O produto era barato, mas não tinha durabilidade. É mais ou menos o que acontece no segmento de pneus. Preço baixo da concorrência, se não tiver qualidade, não é um risco para nós. No setor de pneus, as empresas seguem o que a Michelin faz.