Há uma nova e poderosa idéia circulando na sede da Microsoft, em Seattle. Ela diz respeito à maneira como as informações transitam na Internet e à melhor forma de organizá-las para simplificar a vida das pessoas. O principal divulgador da idéia, senão o seu autor, é Willian Gates III, conhecido mundialmente pelo apelido de Bill Gates. O fundador da Microsoft quer que todos os programas usados na Internet e fora dela conversem entre si e interajam automaticamente. Por trás disso existe uma concepção do software não mais como uma série de produtos isolados, mas sim como um serviço integrado, montado em torno das necessidades do consumidor ? quem quer que seja, onde quer que esteja, seja qual for seu equipamento. Parece uma coisa complicada, e é. Para colocá-la em prática, Gates terá de mudar radicalmente o modelo de negócios da sua empresa e arrastar com ela boa parte da indústria digital. O prêmio pelo esforço é a liderança na próxima metamorfose da Internet, aquela que vai transformá-la no centro de toda a comunicação pessoal e empresarial do planeta. Surpreendido pela explosão da Internet em 1994, Gates reagiu e fez a primeira revolução da Microsoft ? levou-a à Rede. Agora, tenta saltar à frente com segunda revolução.

Em Seattle, na verdejante sede mundial da companhia, a mudança de rumo só é visível pelo ubíquo .Net, o logo da plataforma técnica sobre a qual a companhia quer se reorganizar. Para quem olha de fora, a maior empresa de software do mundo segue em velocidade de cruzeiro. A Microsoft faturou US$ 23 bilhões em seu último ano fiscal e obteve um lucro espetacular de US$ 9,4 bilhões. Há duas semanas, tirou a Bolsa americana de (outra) baixa ao anunciar crescimento de 11% nas vendas e elevação ainda maior dos ganhos por ação. Mas a mudança em direção à Microsoft.Net está em curso. Gates lidera o trabalho técnico pessoalmente, em sua nova função de arquiteto-chefe de software. Cabe ao homem mais rico do mundo zelar para que a pesquisa e o desenvolvimento de produtos se façam sob a égide da nova orientação holística. Ela exige que todos os programas se comuniquem integralmente. Isso significa que em um prazo de dois ou três anos todos os produtos da empresa terão de ser reescritos de ponta a ponta ? sem perder a conexão e a operacionalidade com as gerações anteriores. É um trabalho de proporções oceânicas.

Se Gates é o responsável pelo aspecto técnico da revolução na Microsoft, o homem encarregado da transformação gerencial e mercadológica correspondente chama-se Steve Ballmer. Ele é o presidente da Microsoft desde 1998 e executivo-chefe desde janeiro deste ano. Esse sujeito grandalhão e engraçado está preparando a companhia para deixar o terreno seguro dos computadores de mesa e avançar na Era Pós-PC. ?Novas oportunidades estão se abrindo. Para aproveitá-las temos de ampliar a área de atuação da companhia?, disse Ballmer à DINHEIRO. A Microsoft vai ter de crescer, descentralizar seu comando, internacionalizar ainda mais a sua atuação. Seu faturamento, que hoje depende em 73% da venda de programas para computadores de mesa, terá de ser dividido de forma mais equilibrada com os produtos de uso empresarial e as receitas obtidas com serviços na Internet. Quando isso tudo terminar, a empresa criada em 1975 por Gates e Paul Allen será muito parecida com aquilo que os cabeludos rebeldes que a inventaram mais desprezavam: uma grande e diversificada multinacional como a IBM.

BALLMER, O TIGRE

 

Às vezes Steve Ballmer fala, outras vezes ruge como um tigre enjaulado. Em qualquer das situações, o presidente e CEO da Microsoft é muito convincente. Seu entusiasmo revela-se ao falar dos planos de transformação da empresa para os próximos anos. Sua tremenda energia transborda em gritos e gestos ao comentar os rivais da Oracle e da Sun Microsytems. ?Não sei como o mercado pode levar a sério previsões de empresas que nunca viram um consumidor?, escandaliza-se. Com seu jeito estriônico, calculado para despertar simpatia e fazer rir, Ballmer é um grande vendedor. De software e idéias. A seguir trechos da sua entrevista à DINHEIRO.

 

Que tipo de transformação você está fazendo na empresa?
?Estamos tentando ampliar nossa atuação. Por 25 anos esta companhia trabalhou movida pela visão de um computador em cada mesa e em cada casa. Fizemos muito com isso, mas agora precisamos de uma nova plataforma tecnológica, mais ampla, que comporte as novas oportunidades do mercado. Tudo isso tem a ver com tamanho da empresa: se você quer crescer, tem de ter uma visão diferente, uma plataforma diferente, uma estrutura de gestão diferente.?

Qual o papel da .Net nesse projeto?
?É a nossa visão para a Internet, assim como o Windows foi a plataforma para a visão dos PCs. O mundo está claramente se movendo para a Internet, mas o mundo PC e o mundo Web ainda são muito diferentes. Precisamos de tecnologias para colocar esses mundos mais perto. Há uma infinidade de aparelhos que não são PCs e precisam ser conectados à Rede. Mas não adianta falar dos novos equipamentos em um mundo em que tudo depende do software. Com o .Net nós estamos fazendo a plataforma para a mudança.?

Como será a companhia em cinco anos?
?Todos os nossos negócios devem crescer, mas o crescimento percentual será maior no mercado corporativo e na Internet. As vendas de programas para os computadores de mesa devem crescer entre 9% e 15% ao ano, enquanto os programas corporativos podem crescer entre 25% e 35%. Hoje em dia, 73% do nosso faturamento vem dos computadores de mesa e a área corporativa responde por apenas 15%. Em cinco anos, o software para PCs vai ser apenas 50% do nosso faturamento e o resto vai crescer proporcionalmente.?

E a Internet? O mercado acionário está pulverizando as empresas pontocom…
?O mercado acionário não está julgando a Internet, ele não funciona para isso. Sua utilidade é julgar companhias, dizer se elas são capazes de produzir lucro. Você pode ter coisas incríveis que não produzem lucro. Warren Buffett, o investidor, adora falar sobre a indústria de aviões. Ela existe há 80 anos e os aviões beneficiaram a sociedade imensamente, mas o lucro total produzido pela indústria de aviões em toda a sua existência é zero. A Internet certamente será formidável para a civilização. Mas vai ser boa para os investidores? Talvez não.?

Quanto o processo na Justiça feriu a empresa?
?Não há dúvida que a nossa imagem foi arranhada. Quando você é processado pelo seu próprio governo, as pessoas pensam: essa companhia não é boazinha. Ela é muito má e as pessoas que trabalham lá são muito más. Quando nós vencermos este caso, muita gente só vai lembrar das coisa ruins que disseram a nosso respeito. Mas eu tento ver o lado positivo das coisas e não perco tempo demais pensando nesse processo.?

E se vocês perderem?
?Não perderemos.?

O que o sr. acha de Larry Ellison e da Oracle?
?Quando foi a última vez que você usou um programa da Oracle? Nunca. O mundo é feito de usuários, gente de carne e osso. Ellison não entende isso. Ele não afeta a vida de um único usuário no trato com computadores. Como pode ter a pretensão de definir o futuro? É engraçado ver ele e Scott McNealy, da Sun, dizendo que não gostam de PCs. Será que eles estão certos e 500 milhões de pessoas que usam PCs estão erradas? Acho que Ellison está meio perdido.?

MUITO ALÉM DOS PCS

Quando se olha a Microsoft de perto, percebe-se que talvez não haja opção. Críticos da empresa como Larry Ellison, da Oracle, não cansam de apontar que a dona do Windows está ficando velha, que ela depende excessivamente da venda de programas para computador de mesa, e que esse mercado está ameaçado pela disseminação da Internet e a chegada de aparelhos portáteis de comunicação digital. A venda dos equipamentos novos cresce a taxas anuais superiores a 30%, enquanto os PCs avançam 10% ao ano. É a rota da maturidade das vendas, terror das empresas acostumadas a crescer rápido. Logo, a Microsoft precisa pegar a próxima onda antes que seja tarde. Mas tem de fazer isso sem perder as receitas que obtém agora com a venda de programas para computadores pessoais. É aí que entra a visão da companhia: transição gradual para um mundo em que tudo se organize pela Internet, através de diferentes aparelhos.

Este ano a Microsoft já colocou na praça as primeiras versões do Windows que trazem embutido um código capaz de permitir a comunicação pela Rede. É o XLM, um padrão de diálogo digital capaz de atuar como esperanto entre diferentes programas e aparelhos. ?Em dois ou três anos, todos os programas da empresa serão recheados com esse código?, diz Charles Fitzgerald, diretor de desenvolvimento de negócios. A expectativa da Microsoft é que outras empresas usem o mesmo padrão. Isso faria o mundo caminhar de acordo com a visão delineada em Seattle e plantaria a empresa no centro do novo universo. A sua, porém, não é a única visão no mercado. ?O mundo da tecnologia parece Jerusalém no ano 1. Há um profeta em cada esquina?, diz Mauro Not, gerente-geral da Microsoft brasileira.

Em benefício de Gates e Ballmer, é preciso dizer que eles não escolheram a profecia mais fácil. Teria sido mais simples sentar na posição de líder e tentar convencer o mundo de que nada vai mudar. É assim que as empresas começam a envelhecer. Logo, os dois optaram por fazer o contrário. Estão trombeteando uma enorme reviravolta e arregaçando as mangas para implementá-la. Em Seattle, já estão em curso as famosas reuniões informais ? chamadas de brow begs, por causa dos saquinhos de sanduíches ? em que as pessoas partilham informações e idéias. ?Isto aqui se move debaixo para cima?, diz Henrique Malvar, brasileiro que chefia uma das equipes de pesquisa da Microsoft. Como não é fácil mover uma empresa que tem 40 mil funcionários, montou-se uma força-tarefa para acelerar a transição.

Jorge Salles, ex-diretor da Microsoft brasileira, foi escolhido para comandar a gerência .Net para América Latina, Caribe, Canadá e Oceania. ?Temos de definir e implantar um modelo de negócios inteiramente novo?, afirma. A Microsoft quer deixar gradualmente de vender caixinhas e ganhar dinheiro com o aluguel de programas. Não está muito claro como isso vai funcionar, mas é diferente de tudo que se fez antes. ?Nunca se viu nada tão radical nesta empresa?, diz Salles. Não há nessa atitude auto-confiante nada que permita detectar timidez face ao processo movido contra a Microsoft pelo Departamento de Justiça americano. Julgado em primeira instância, ele concluiu com a recomendação de dividir a companhia em duas, para evitar monopólio. A apelação está em curso. Mas se a Justiça não for rápida, a sentença, qualquer que seja, vai encontrar uma empresa totalmente diferente. A Microsoft.Net.