O Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) entrou na quarta-feira, dia 12, com pedido de medida cautelar junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), para reconhecer a inconstitucionalidade da atuação de municípios brasileiros envolvidos nos processos indenizatórios referentes ao desastre ambiental de Mariana em pleitos judiciais fora do país. Batizada como Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a medida tem o objetivo central de resguardar a soberania brasileira e restabelecer a observância aos princípios constitucionais. “Como não passam pelo crivo do Poder Judiciário brasileiro, a transparência dessas ações no exterior fica comprometida e se inviabiliza a necessária participação do Ministério Público, essencial para defender a ordem jurídica brasileira e promover a pacificação social”, destaca comunicado oficial do Ibram sobre o assunto.

No entendimento da entidade, processos movidos por fundos e escritórios de advocacia internacionais podem arrastar o litígio pelo desastre de Mariana, ocorrido há nove anos, até 2027. O imbróglio jurídico envolvendo a maior catástrofe ambiental da história do país ocorre no momento em que uma nova proposta de acordo de 140 bilhões de reais promete pôr um fim às negociações envolvendo vítimas, comunidades, União, Minas Gerais, Espírito Santo e municípios do entorno.

“Os principais argumentos constitucionais para essa medida estão baseados na competência privativa da União para tratar de assuntos internacionais. O Ibram argumenta que a estrutura federativa do Brasil impede que os municípios se relacionem diretamente com Estados ou jurisdições estrangeiras, uma vez que os entes federativos, embora tenham autonomia, não possuem a soberania, que é nacional”, explica Raul Jungmann, presidente do instituto, ressaltando ainda que essa prática de litigância tem afetado de forma significativa o setor mineral.

Em 5 de novembro de 2015, a barragem de rejeitos pertencente à mineradora Samarco, conhecida como “fundão”, rompeu no município de Mariana. O desastre, que despejou 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro, deixou 18 mortos e 1 desaparecido, além de um rastro de devastação no curso do Rio Doce nas comunidades do entorno, com impacto para milhares de moradores. Até aqui, 37 bilhões de reais foram desembolsados a título de indenização e reparos em rodadas diversas de negociação.

Depois de muitas idas e vindas nas últimas semanas, a Samarco e suas controladoras, a Vale e BHP Billiton, fizeram uma contraproposta à União, aos Estados de Minas e Espírito Santo e outros afetados que estabelece o pagamento de 140 bilhões de reais. O montante considera o que foi pago até agora, mais 82 bilhões de reais em novas compensações, além de 21 bilhões de reais em obrigações a cumprir. Com isso, a expectativa é de que um acordo definitivo seja aprovado até o final do mês, colocando um ponto final nessa ferida que continua aberta em Mariana.

Assédio internacional

O acordo proposto, entretanto, pode ser comprometido em função de ação de grupos internacionais interessados em transferir esse pleito para o exterior, com objetivo de levar fatia substancial de um acordo. É um movimento que vem se fortalecendo desde 27 de julho de 2021, quando o Tribunal de Apelação de Londres decidiu reabrir um processo de 35 bilhões de reais contra a mineradora anglo-australiana BHP. Em 9 de novembro de 2020, um tribunal de Manchester havia negado o pedido dos reclamantes brasileiros, alegando ser o caso não procedente por falta de jurisdição.

O principal articulador desse movimento é o escritório de advocacia britânico Pogust Goodhead (PG), que liderou uma intensa campanha de mobilização da opinião pública, batizada de Revida Mariana. O processo representa, em tese, 700 000 litigantes, entre atingidos, indígenas, quilombolas, municípios, empresas, igrejas e concessionárias de serviços públicos.

A campanha, bem estruturada e articulada em escala internacional, incluiu protesto na porta da sede da BHP em Adelaide, na Áustria, em novembro de 2023, e a presença de mais de 30 manifestantes brasileiros na sede do judiciário em Londres, em fevereiro de 2024. O julgamento está previsto para outubro de 2024, e a soma das indenizações estimadas é de 230 bilhões de reais.

O PG foi fundado em 2018, pelos advogados Thomas Goodhead e Harris Pogust, e tem como linha principal de atuação processos envolvendo vítimas de grandes desastres, levando o caso para jurisdições nos Estados Unidos ou da Inglaterra. Estima-se que o escritório esteja envolvido em ao menos 27 processos como os de Mariana, entre eles o recente do afundamento da mina de sal-gema da Braskem em Maceió. São mais de 600 advogados contratados, metade deles brasileira.

Recentemente, o escritório foi alvo de uma reportagem publicada no jornal britânico Daily Mail, em que Goodhead e Pogust são mostrados como adeptos de um estilo de vida ostentatório exibido em suas redes sociais. Pogust em particular não economiza fotos de viagens em jatinhos particulares, brindes com champanhe de primeira linha e momentos de lazer em lugares exóticos ao lado da esposa. Além da BHP, o escritório já moveu processos similares contra empresas do porte de British Airways, Bayer e Volkswagen (Dieselgate). O caso de Mariana tem destaque na página oficial do Pogust Goodhead. Além de advogado, Goodhead também se posiciona como ativista contra o “extrativismo predatório” em países como o Brasil, em palestras na Universidade Harvard.

Denúncias e inverdades

A possibilidade de um acordo entre as mineradoras e as partes interessadas na Justiça brasileira pode comprometer as promessas de que o PG garantiria uma indenização bilionária para as vítimas a partir do processo aberto em Londres. A corte britânica determinou que os pedidos de indenização individual, caso as rés não sejam bem-sucedidas em sua defesa de responsabilidade, só devem entrar em fase final a partir de outubro de 2026. A partir daí, haverá audiências com duração de 22 semanas. Dessa forma, essa fase do processo só será concluída em 2027.

Esse fato contradiz as previsões do escritório de que o desfecho do processo aconteceria em março de 2024. O intricado andamento processual se soma ao abalo na reputação da Pogust Goodhead com as reportagens que expôe o estilo de vida perdulário de seus sócios publicadas a partir de abril de 2024. Em paralelo, vieram a público denúncias de assédio e má conduta profissional, no Brasil e em outras partes do mundo. Entre as críticas estão as cobranças de honorários de até 50% do valor indenizado, o que coloca a Pogust Goodhead como um escritório “abutre” em litígios com grandes empresas.

Entre as revelações envolvendo o escritório PG, chama a atenção o envolvimento do Gramercy Funds Management, fundo de investimentos com ativos sob custódia estimados em 7,1 bilhões dólares, com foco na América Latina, com a firma advocatícia inglesa. Em outubro de 2023, o fundo alocou 552,5 milhões de dólares no PG para conduzir o processo litigioso contra a BHP no caso de Mariana, o que inclui a abertura de escritório na Austrália, sede da mineradora. Além do Brasil, o fundo já “investiu” em processos litigiosos no Peru, Equador e na Colômbia.

Caso sejam bem-sucedidos, o acordo de 140 bilhões de reais e iniciativas como a do Ibram jogam areia no plano do PG e do Gramercy ao tirar força do litígio na corte britânica. Raul Jungmann, presidente do Ibram, aponta ainda que a participação de municípios em litígios no exterior traz impactos orçamentários e representa compromissos financeiros que exigem autorização prévia do Senado Federal. “Considerando que o art. 52, V, da Constituição Federal estabelece ser competência privativa do Senado autorizar operações externas de natureza financeira, é possível enquadrar as despesas processuais desses litígios, como tais operações.”

Em recente entrevista para a TV Alterosa, de Minas Gerais, a presidente do Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), Mônica Sifuentes, afirmou estar “muito otimista” com o desfecho positivo do acordo, encerrando de uma vez por todas o trágico episódio de Mariana. As próximas semanas serão decisivas para o avanço das negociações.