06/04/2023 - 14:28
Em sete episódios, “Transatlântico” conta como dois americanos e seus aliados ajudaram a resgatar judeus europeus célebres, como Hannah Arendt e Marc Chagall. Minissérie de Anna Winger estreia nesta sexta-feira.Em 1940, o jornalista americano Varian Fry foi enviado à cidade de Marselha, no sul da França, para ajudar os europeus que fugiam do terror nazista. Trabalhando em nome do Comitê de Resgate de Emergência (ERC) americano e com a ajuda da herdeira americana Mary Jayne Gold, que fornecia ajuda financeira e logística, Fry e sua equipe resgataram mais de 2 mil pessoas.
Entre elas estavam alguns dos maiores artistas e intelectuais da Europa, incluindo a filósofa Hannah Arendt, bem como Marc Chagall, Max Ernst e Marcel Duchamp – imigrantes que acabaram ajudando a desencadear um renascimento intelectual nos Estados Unidos.
“É praticamente a melhor história jamais contada”, diz a escritora e produtora americana Anna Winger, residente em Berlim, que transformou a história de Fry e do comitê ERC em minissérie: Transatlântico, dividida em sete episódios, estreia mundialmente nesta sexta-feira (07/04) na Netflix.
“Todos os envolvidos eram escritores ou artistas. Todos escreveram memórias, peças de teatro, ficção, histórias e romances. Então quando a gente começa a se interessar [pelo tema], tem, na verdade, muito material sobre isso.”
Winger também escreveu e produziu para a Netflix a série vencedora do Emmy Nada ortodoxa (2020), que conta a história de uma judia ultraortodoxa que foge de uma comunidade hassídica fechada no Brooklyn em busca da liberdade em Berlim, bem como a série da Amazon Deutschland '83/'86/ '89, um suspense ambientado na Guerra Fria e contado a partir da perspectiva de um espião da Alemanha Oriental.
Winger ouviu falar sobre Fry e o ERC pela primeira vez através de seu pai, que como professor em Harvard conheceu o famoso economista Albert Hirschman. Interpretado pelo novato austríaco Lucas Englander na minissérie da Netflix, Hirschman foi um refugiado judeu alemão que permaneceu em Marselha para ajudar outros a escaparem.
Mas a verdadeira inspiração para resgatar a história de Fry veio em 2015, quando Winger viveu de perto a crise de refugiados na Europa.
“Meu escritório ficava no aeroporto de Tempelhof, em Berlim, e no andar de baixo, nos hangares, era o primeiro ponto de entrada para os refugiados que vinham sobretudo da Síria. Era lá que estávamos todos como voluntários”, recorda. “Minha filha, que na época tinha 12 ou 13 anos, disse: 'Na verdade, essas são apenas pessoas como nós, exceto que pessoas como nós costumavam deixar Berlim. E agora essas pessoas estão vindo para cá em busca de refúgio'.”
Em 2019, enquanto Winger se debruçava na criação de Nada ortodoxa, a romancista americana Julie Orringer publicou The flight portfolio, uma versão ficcionalizada das façanhas de Fry e do ERC em Marselha. “Parecia coisa do destino”, lembra Winger. “Então comprei os direitos do livro, e foi assim que a coisa toda surgiu.”
Inspirada em Casablanca
Em vez de tentar fazer um drama documental, Anna Winger e o corroteirista Daniel Hendler criaram Transatlântico como uma aventura romântica ficcional, inspirada nos filmes de Hollywood da época.
“Eu li um pouco sobre a produção de Casablanca, que é um dos meus filmes prediletos, e muitas das pessoas que trabalharam no filme eram, na verdade, alemães recém-emigrados”, diz Winger. “De repente, eles se viram lidando com a Segunda Guerra Mundial e as notícias de casa em tempo real, todo o trauma e a tragédia, e canalizando tudo isso em humor e romance.”
As convenções dos melodramas e comédias malucas dos anos 1940 ditam o ritmo e a narrativa de Transatlântico, que se concentra não apenas em Fry, interpretado por Cory Michael Smith, e no ERC, mas também num romance imaginário entre Hirschman (Lucas Englander) e Mary Jayne Gold (Gillian Jakobs) – que na minissérie da Netflix tem uma função paralela como espiã da inteligência britânica, ajudando a libertar alguns soldados ingleses de um campo de prisioneiros de guerra nazista.
Algumas das cenas mais fortes da série são verdadeiras peças de comédia. O ator alemão Alexander Fehling faz uma performance brilhante como um espalhafatoso Max Ernst. Jonas Nay, astro de Deutschland '83, também faz uma participação especial como o satírico alemão Walter Mehring, e apresenta um musical de cabaré espetacular.
“Acho que, de certa forma, essa é a realidade em tempos difíceis”, diz Lucas Englander. “Há uma razão pela qual as pessoas na Ucrânia estão mantendo os ânimos tão fortes no momento, porque elas não estão dispostas a desistir. [Em vez disso], elas dizem: 'Vou continuar e vou ficar, e ninguém pode tirar meu humor, porque ele é mais forte do que isso'.”
Uma história “positiva” para refugiados
Juntamente com os esforços de resgate, que incluíram tentativas dramáticas de transportar refugiados através dos Pirineus para a Espanha ou escondidos como clandestinos em navios de carga com destino às Américas, a minissérie explora as correntes ocultas de uma revolução mais ampla que estava começando a tomar forma.
“Quando a França ainda lutava contra os nazistas, foram trazidos todos os tipos de pessoas das colônias francesas na África Central, no Norte da África e na Ásia, e depois que Paris caiu, essas pessoas foram dispensadas do serviço, mas ainda estavam no país”, conta Anna Winger.
“Era o início da Resistência Francesa, e muitos africanos fizeram parte desse processo. E porque tudo está ligado, a Resistência Francesa foi também o início do fim do sistema colonial. Todo o processo uniu pessoas que, de outra forma, jamais teriam a chance de se conhecer. Isso gerou novos conceitos de liberdade.”
Essas diferentes histórias de liberdade – refugiados judeus fugindo para os EUA para se livrar do terror na Europa, revolucionários africanos lutando para libertar a França dos nazistas e, por fim, a África da França, e até mesmo Mary Jane Gold se libertando pessoalmente de sua família patriarcal americana nesta miscelânea de artistas europeus – tudo isso é a força unificadora de Transatlântico.
“Esta é, de forma explícita, uma história positiva para refugiados. Não é polêmica, ao mesmo tempo em que é”, afirma Winger. “Nesta história, temos todos os refugiados que tentam chegar à América em busca de liberdade política. E enquanto isso, também temos os americanos encontrando liberdade pessoal na Europa em tempos de guerra. Todos estão correndo em direção à liberdade e se encontram nessa interseção.”