13/07/2024 - 18:08
Alemanha voltará a ter mísseis americanos de longo alcance pela primeira vez desde a década de 1990. Partidos à direita e à esquerda alertam contra clima de Guerra Fria 2.0.Pela primeira vez desde a década de 1990, os Estados Unidos querem estacionar armas de longo alcance na Alemanha.
O acordo, selado na última reunião de cúpula da Otan em Washington, foi justificado pelo chanceler federal Olaf Scholz como resposta a uma Rússia que tem acumulado cada vez mais “armas que ameaçam o território europeu”. Já o ministro alemão da Defesa, Boris Pistorius, disse que a medida é um remédio necessário para “uma lacuna séria nas nossas capacidades [militares]”.
O fim da Guerra Fria havia levado os Estados Unidos a reduzirem significativamente seus arsenais de armas de longo alcance na Europa. A União Soviética, e depois a Rússia, seguiram pelo mesmo caminho. Naquela época, pairava no ar uma sensação de paz, e a segurança parecia garantida – até a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, ressuscitar velhas hostilidades.
Questão de alcance
Um dos tipos de armas a serem estacionadas na Alemanha a partir de 2026 são mísseis de cruzeiro Tomahawk, que demonstraram sua eficiência nos últimos 30 anos – mais recentemente, em embates com os houthis do Iêmen.
Mísseis de cruzeiro voam paralelamente ao solo em altitudes baixas, diferentemente de mísseis que percorrem trajetórias elípticas (ou seja, ligeiramente ovais). Isso torna mais difícil o reconhecimento dessas armas por radares inimigos, bem como sua interceptação.
A Alemanha também deve receber mísseis americanos capazes de viajar a uma velocidade muito superior à do som e de percorrer distâncias superiores a 2.750 km. Essas armas, contudo, ainda estão em desenvolvimento.
Os mísseis de cruzeiro do tipo Taurus, de fabricação alemã, só conseguem percorrer cerca de 500 km e são lançados a partir de aviões. Tomahawks, por outro lado, podem ser disparados a partir do chão ou de navios, e cobrem uma distância muito superior, de até 2.500 km – mais que o suficiente para os 1.600 km que separam Berlim de Moscou, ou os 600 km até o exclave russo Kaliningrado, no Mar Báltico, entre a Polônia e a Lituânia.
É de Kaliningrado, aliás, que Pistorius acredita que emane a maior ameaça russa. “A suspeita é que a Rússia estacionou esses sistemas de armas ali faz algum tempo, o que significa que eles estão no raio de alcance da Alemanha e de outros países europeus”, afirmou o ministro da Defesa à emissora pública de TV alemã ARD.
Alguns temem nova corrida armamentista
A política alemã reagiu dividida ao anúncio do envio de mísseis americanos. A maioria dos partidos de centro apoia a medida, enquanto os extremos a rejeitam. O centro-esquerdista Partido Social Democrata (SPD), de Scholz, que tradicionalmente se posicionou pela paz, diz que a ação é necessária. Os outros dois partidos da coalizão de governo, Verdes e os liberais do FDP, bem como a aliança conservadora CDU/CSU, maior bloco de oposição, pensam o mesmo.
Já o ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD) e a recém-criada sigla populista de esquerda Aliança Sahra Wagenknecht (BSW), dissidência do partido A Esquerda, disseram-se preocupados com uma nova corrida armamentista.
Co-líder da AfD, Tino Chrupalla afirma que os mísseis americanos “fazem da Alemanha um alvo” e acusa Scholz de “não agir no interesse da Alemanha”.
“Com certeza podemos esperar uma nova corrida armamentista”, opina Tim Thies, do Instituto para Pesquisa sobre Paz e Política de Segurança (IFSH), em Hamburgo. “As armas de longa distância podem ser elementos importantes da estratégia da Otan. Mesmo assim, é preciso contar com uma reação da Rússia.”
Aposta em via dupla de persuasão da Otan deu certo na Guerra Fria
A situação evoca lembranças de uma decisão da Otan dos tempos da Guerra Fria.
Em 1979, a aliança militar anunciou o envio de mísseis nucleares de médio alcance e mísseis de cruzeiro a países da Europa Ocidental em resposta à ameaça soviética. Paralelo a isso, convidou Moscou para sentar à mesa de negociações. Dali sairiam, poucos anos depois, diversos tratados de desarmamento nuclear.
A “ação por duas vias” da Otan foi extremamente polêmica na Alemanha Ocidental e desencadeou grandes protestos – apoiados, inclusive, por um emergente Partido Verde e pelo jovem social-democrata Olaf Scholz.
O pesquisador Thies lembra que, no final das contas, EUA e União Soviética acabaram assinando o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (também conhecido com o Tratado INF), e centenas de foguetes americanos e “outros muito mais” soviéticos foram destruídos. “Mas o caminho até lá era tudo, menos inevitável. E foi preparado, principalmente, em razão da relação extraordinária entre [Ronald] Reagan e [Mikhail] Gorbachev”, pondera, referindo-se aos líderes americano e soviético.
Alemanha deve fabricar seus próprios mísseis
O envio de mísseis americanos é aparentemente apenas uma solução provisória. O ministro alemão da Defesa, Pistorius, disse à rádio DLF que os EUA esperam do acordo, “muito claramente e com razão”, que a Alemanha invista “no desenvolvimento e aquisição desse tipo de armas de longo alcance”.
É possível que os primeiros passos nesse sentido já tenham sido dados, ainda durante a cúpula da Otan em Washington. Representantes de Alemanha, França, Itália e Polônia assinaram na ocasião uma declaração de intenções para o desenvolvimento de mísseis de cruzeiro lançados a partir do solo e com um alcance de 500 km.
Eventual eleição de Trump muda algo?
Thies, do IFSH, diz não acreditar que a história dos mísseis americanos caia por terra em caso o republicano Donald Trump volte à Casa Branca em 2025. Pelo contrário: “Muitos dos sistemas de mísseis que estão em jogo agora foram iniciados por Trump. Além disso, Pistorius disse que a Alemanha é quem vai pagar pelos mísseis. O governo parece se antecipar, quase se curvar, a eventuais exigências de um possível futuro presidente Trump.”
A explícita reação de Moscou aos planos teuto-americanos não era esperada da forma que veio. O vice-ministro russo do Exterior, Sergei Riabkov, disse que a segurança do país seria prejudicada, e definiu o movimento como “um elo na cadeia de escaladas” da Otan e dos EUA em relação à Rússia.
Thies espera que o país reaja posicionando e desenvolvendo mais sistemas de mísseis de longo alcance, “e desta vez nucleares, que possivelmente poderiam alcançar também território americano”. Isso, na visão do pesquisador, não depõe contra o posicionamento de mísseis americanos em solo alemão, mas ele aconselha a “refletir sobre como pode ser o caminho para sair da espiral armamentista que está se formando”.