27/07/2022 - 7:00
Parte da história da Independência do Brasil está marcada ao longo de alguns quilômetros entre a Baixada Santista e a Grande São Paulo. Por ali, o caminho percorrido por d. Pedro I rumo ao Ipiranga e monumentos centenários alusivos à data passam por um processo de restauro, do qual mais da metade estará concluída até a festa dos 200 anos da Independência nos Caminhos do Mar, no Parque Estadual Serra do Mar. O restante tem entrega estimada até março de 2023.
A maior relíquia em processo de restauro abrange os trechos de quatro quilômetros da Calçada do Lorena, feitos de pedras, em operação dos anos 1790 a 1860, e hoje parte de um roteiro turístico. O trajeto original era mais longo e sofreu modificações com a construção da Estrada Velha de Santos e a industrialização de Cubatão. O que restou passa em meio à Mata Atlântica, na Serra do Mar.
A via também foi percorrida por d. Pedro I após passagem por São Paulo e, dias depois, na madrugada do dia da proclamação da Independência, em 1822. “Ele desceu para Santos para ver como estavam as fortalezas que guardavam o porto, já antevendo uma possível luta, como acontecia na Bahia, e aproveitou para visitar a família de José Bonifácio, que era o seu principal ministro”, explica o historiador Paulo Rezzutti, biógrafo do monarca.
“Também havia questões sobre ter tido um motim no começo de 1822, por falta de soldo, que fez com que alguns militares fossem presos. Foi meio que para marcar a presença do Estado na região”, ressalta. O historiador explica que a parada da comitiva no Ipiranga era estratégica: para trocar de montaria, das mulas (mais indicadas para percorrer subidas) por cavalos.
A expectativa da equipe de restauro é identificar a largura original, hoje parcialmente recoberta por vegetação e terra, e possíveis apoios nas bordas, como parapeitos. Para tanto, utiliza-se uma câmera térmica e são esperados trabalhos de arqueologia.
Outro trecho, perdido durante anos, de dois quilômetros, foi reencontrado na mata do parque, em Cubatão. A descoberta foi feita por uma expedição liderada por Jorge Cintra, pesquisador e professor do Museu do Ipiranga, entre março e abril deste ano. Ele marcou o caminho com um GPS e utilizou mapas de diferentes épocas.
“Em um País com pouca memória e tão poucos monumentos preservados, essa obra de engenharia colonial possui bastante destaque e ajuda a contar ao vivo um pouco da nossa história”, avalia. Ele explica o papel da via: “tornou transitável a estrada em todas as épocas do ano, principalmente na das chuvas, facilitando o transporte de mercadorias, principalmente do açúcar, a grande riqueza da capitania na época e, mais tarde, nos inícios do ciclo do café”. Na expedição, o pesquisador também encontrou o local onde antes havia um rancho de madeira e sapê atingido por um incêndio décadas atrás.
POUSO E RANCHO
Os trabalhos de restauro incluem também as construções do centenário da Independência, de 1922, erguidas junto à Estrada Velha de Santos. A maioria das construções está localizada dentro dos Caminhos do Mar e, assim como a Calçada do Lorena, é tombada na esfera estadual.
Os sete monumentos foram projetados pelo arquiteto franco-argentino Victor Dubugras (o mesmo do Largo da Memória, no centro de São Paulo), com murais de azulejo do artista José Wasth Rodrigues. A restauração completa custará R$ 4,25 milhões, segundo a Parquetur, concessionária responsável pelo trecho do parque, e abrange também a Calçada do Lorena e as ruínas do que teria sido o alojamento de trabalhadores das obras do centenário.
Entre os monumentos, dois são edificações pensadas originalmente como pontos de apoio aos viajantes. Ambos estão em processo de adaptação para espaços de gastronomia portuguesa. O primeiro a ser entregue será o Pouso de Paranapiacaba, temporariamente como cafeteria e, depois, como restaurante. Já o Rancho de Maioridade será um café.
MATERIAIS
Outro que terá novo uso é o que restou do antigo alojamento. O projeto prevê que as ruínas sejam transformadas em loja de suvenir e no ponto final de uma tirolesa. A escolha dos materiais teve o objetivo de deixar evidente o contraste entre o original e o novo. Em comum, a maioria dos monumentos tem o uso amplo de granito e revestimentos com azulejos na fachada e áreas internas. Há também murais narrativos da história predominante à época do desenvolvimento da região, da chegada dos portugueses e jesuítas até o fluxo de tropeiros na Calçada do Lorena.
Para o restauro, são utilizados desde pequenos pincéis, bisturis e até câmeras térmicas, usadas para identificar patologias, como infiltrações. A estrutura necessária também varia. No caso do Rancho da Maioridade, pela altura da construção e dimensões em curva, optou-se por andaimes multidimensionais, que podem circundar a fachada e permitem a proximidade necessária para recuperar os azulejos in loco.
Por enquanto, foram entregues o Pontilhão Raiz da Serra (junto à portaria de Cubatão), o Cruzeiro Quinhentista (localizado fora do parque), o Monumento ao Pico e o Belvedere Circular. Estão em processo para o início dos trabalhos de recuperação o Rancho da Maioridade, as ruínas e o Padrão do Lorena. Por fim, o “restaurômetro” avalia como 83% e 10% prontos, respectivamente, o Pouso de Paranapiacaba e a Calçada do Lorena.
A obra mais “trabalhosa”, segundo o engenheiro Francisco Damião do Nascimento, que coordena a produção, é a do Pouso de Paranapiacaba. Cerca de 60% da madeira do telhado estava comprometida e teve de ser substituída. “Estava colapsado em alguns lugares”, explica. O projeto também envolve adaptações à legislação e às necessidades atuais.
No Pontilhão, após o restauro, por exemplo, a placa de bronze segue com as marcas feitas por passantes e o tom esverdeado deixado pelo processo de oxidação do material. Já, no Pouso os azulejos de temas agrícolas do salão principal foram quase inteiramente retirados para restauro em um estúdio. Peças em melhores condições foram mantidas no local.
Professor na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), o arquiteto e historiador Alex Miyoshi explica que os monumentos estão alinhados ao neocolonialismo, chamado à época de arquitetura brasileira.
“Revalorizou a cultura luso-brasileira no início do século 20, reinterpretando elementos do barroco, tais como os característicos pináculos e volutas”, argumenta o historiador.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.