Os quatro foram encontrados mortos na rua Yablunska na cidade de Bucha, mas chegaram ao local por razões diferentes: uma tentativa de fuga arriscada, uma bicicleta emprestada, um parente ferido. Um deles, inclusive, nasceu na Rússia.

No início de abril, em um trecho desta rua da cidade ucraniana na periferia de Kiev foram encontrados os corpos de pelo menos 20 pessoas com roupas civis, vítimas de supostos crimes de guerra cometidos pelas tropas russas.

As imagens dos mortos – em sua maioria atingidos por tiros e abandonados no local durante semanas – feitas pela AFP e outros meios de comunicação provocaram uma tempestade de indignação mundial e resultaram em mais sanções contra a Rússia, além do aumento da ajuda para a Ucrânia.

No momento, há mais perguntas do que respostas sobre o massacre, mas aos poucos o que aconteceu começa a ser revelado com o avanço do trabalho dos investigadores, que coletam evidências e as testemunhas recordam os detalhes do horror de Yablunska.

Na quinta-feira (28), a Procuradoria ucraniana anunciou que 10 soldados russos são investigados por supostos crimes em Bucha vinculados ao “tratamento cruel de civis e outras violações da lei e costumes da guerra”. A Rússia nega qualquer responsabilidade.

A seguir, as histórias de alguns mortos de Yablunska.

– Uma rajada –

“Saímos juntos e voltei sozinho”, disse Oleksandr Smagliuk, de 21 anos, olhando para o vazio, ao recordar a manhã de 6 de março.

Os tanques russos estavam em Bucha há mais de uma semana e a contraofensiva ucraniana não havia conseguido recuperar a localidade, que fica ao noroeste da capital.

A fuga dos moradores era cada vez mais difícil e se tornou impossível. A cidade estava isolada, sem energia elétrica, água ou conexão telefônica.

Em 6 de março, às 10H30, Mikhailo Romaniuk, de 58 anos, acompanhava Smagliuk, o namorado de sua sobrinha, para visitar o pai da jovem, gravemente ferido após um ataque, em um hospital.

Smagliuk e Romaniuk acreditavam que conseguiriam recarregar os celulares no centro médico.

Eles pedalaram por alguns minutos e quando chegaram à rua Yablunska, o tiroteio começou.

“Não vimos ninguém. Não entendi até o fim de onde partiam os tiros. Escutei apenas as rajadas e o vi cair. Me arrastei até outra rua para escapar”, conta Smagliuk.

Alguns moradores afirmaram à AFP que os tiros durante a ocupação partiram de várias direções, o que aumenta a probabilidade da presença de mais de um atirador.

Sem que os habitantes percebessem, as ruas da cidade próxima a Irpin foram transformadas em postos avançados das unidades russas.

Os tanques estacionaram nas ruas e nos jardins das casas. Os russos criaram barricadas e se deslocaram ao redor dos edifícios.

“A primeira coisa que fizeram foi estabelecer presença e atirar contra tudo o que se movimentava, todos que se aproximavam deles. Atiraram até nas estátuas”, disse o chefe de polícia de Bucha, Vitaly Llobas.

O corpo de Romaniuk permaneceu 28 dias na calçada. Seu rosto, inchado, estava virado para o lado e luvas de cor laranja ainda cobriam suas mãos.

O cadáver foi retirado do local em 3 de abril, após a libertação da cidade.

O atestado de óbito indica “trauma craniano balístico, provocado por um projétil penetrante (…) com múltiplas lesões cerebrais e fratura na cavidade craniana”. O documento conclui: “ferimento por arma automática com intenção de matar”.

Romaniuk trabalhava na área de construção civil em Bucha, para onde muitas famílias de Kiev se mudaram em busca de uma vida tranquila, perto da natureza.

“Ele adorava cantar, era um homem alegre e bebia um pouco”, recorda a cunhada Viktoria Vatura, de 48 anos, ao imitar com a mão alguém que bebe.

Romaniuk foi enterrado em 18 de abril, sem uma cerimônia ou presença de um padre. Diante do túmulo, quatro parentes falaram algumas palavras.

“Era um homem simples, que amava a vida e nunca havia machucado ninguém”, disse Vatura à AFP.

– Mãos para o alto em posto de controle russo –

Em 5 de março, quando ainda era possível, Mikhailo Kovalenko tentou escapar de Bucha em um carro com a filha e a esposa.

Os combates que afetavam a área a transformaram em um local sem água nas casas e com risco constante de morte por tiros ou estilhaços.

Quando o homem de 62 anos chegou à rua Yablunska, ele “saiu do veículo com as mãos para o alto” para se apresentar aos russos no posto de controle, recorda Artem, namorado da filha de Kovalenko, que aceitou falar com a condição de que seu sobrenome não fosse revelado.

Mesmo assim, os soldados russos atiraram, recordaram a mulher e a filha, que correram e conseguiram sobreviver ao ataque.

Enquanto fugia, a mulher foi atingida em uma perna, conta Artem.

O corpo do marido permaneceu na margem da rua por 29 dias.

Um final brutal e repentino para um homem que amava música clássica e caminhadas na natureza de Bucha.

Os parentes o identificaram pelas roupas, com base em uma foto feita de longe pela AFP em 2 de abril.

“Foi horrível”, disse Artem.

Em 18 de abril, as autoridades convocaram Artem a comparecer ao necrotério e identificar o corpo. Sua namorada está na Bulgária agora, em tratamento psiquiátrico.

Desde que presenciou o assassinato do pai, “ela acorda durante a noite”, explica Artem.

Kovalenko foi enterrado diante de Artem e outros dois parentes.

– “Maksym o destemido” –

O sangue se acumulou sob o corpo de Maksym Kirieiev, que estava de bruços em um cruzamento nas ruas Yablunska e Yaremchuka.

Na foto da AFP ele é um dos três corpos abandonados perto de tijolos diante de edifícios em construção.

Um dos cadáveres tinha as mãos amarradas nas costas com um laço branco, que os ucranianos utilizaram para apontar que não eram combatentes.

O homem, de 39 anos, que trabalhava na construção civil, havia sobrevivido à guerra até então escondido em um porão.

“Todos o chamavam de Maksym o destemido, porque ajudava os que precisavam a mudar de refúgio”, conta à AFP Iryna Shevchuk, de 52 anos, que virou sua amiga durante a ocupação.

Shevchuk dá seu depoimento a 100 metros de onde o corpo foi encontrado. Diante dos tijolos, ainda é possível observar rastros de sangue.

Após semanas de ocupação militar, que Maksym documentou em vídeos e mensagens, chegou o seu momento final.

Em 17 de março, ao lado de outro homem, ele saiu do refúgio para mudar de roupa perto de alguns prédios em construção, de acordo com Shevchuk.

Nunca retornou.

“É muito importante fazer justiça para Maksym, porque se não punirmos (os russos), eles farão o mesmo no futuro”, afirmou a amiga.

– Uma bicicleta emprestada –

Volodymyr Brovchenko “precisava levar a bicicleta para Vorzel”, uma cidade próxima onde trabalhava, relata a cunhada Natalia Zelena, de 63 anos.

“Ele pediu a bicicleta emprestada a alguém e naquele dia precisava devolvê-la”, acrescentou.

Brovchenko fazia diversos trabalhos, incluindo o de carpinteiro.

Sua mulher tentou fazê-lo desistir, alegando que a situação era perigosa, mas Brovchenko, de 68 anos e pai de dois filhos, decidiu fazer a viagem.

Ele morreu ao ser baleado quando passava pela rua Yablunska, em uma data próxima a 5 de março.

Zelena e a mulher da vítima, Svitlana Brovchenko, o identificaram graças a uma foto da AFP.

Um morador tentou retirar o corpo da rua, mas também foi baleado. Ele conseguiu sobreviver, conta Zelena.

Durante semanas, Brovchenko permaneceu na calçada ao lado da bicicleta azul.

“Ele nasceu na Rússia, em algum lugar perto do distrito de Gorkovsky”, afirmou Zelena. “Mas morava aqui desde 1976”.