27/11/2024 - 7:24
Movimento feminista sul-coreano 4B viralizou após eleição americana. Proposta rejeita casamento, filhos, relacionamento sexual e namoro com homens para combater a misoginia.Christine Ivans diz que foi difícil quando começou a se afastar de relacionamentos com homens, aos 30 anos. A decisão partiu de uma reavaliação de suas prioridades: investir toda a sua energia em si mesma em vez de tentar encontrar o “homem ideal”.
Alguns meses se passaram. Depois, alguns anos. “Estou feliz. Fui promovida, ganhei um aumento e minha saúde mental melhorou”, diz Ivans oito anos depois.
Mas foi somente quando descobriu o movimento 4B (sigla que significa “quatro nãos”) no TikTok, que ela percebeu que não estava sozinha. “Os quatro nãos são: nada de casamento, nada de filhos, nada de namoro ou relacionamentos sexuais com homens – tudo isso eu venho praticando há algum tempo”, explica.
O movimento 4B, que surgiu na Coreia do Sul em meados da década de 2010, se popularizou gradualmente entre o público americano.
No início deste ano, por exemplo, a atriz americana Julia Fox declarou sua abstinência sexual em resposta à revogação de uma decisão judicial de 1973 da Suprema Corte dos EUA queestabelecia o direito constitucional ao aborto até a 24ª semana de gravidez. Em 2022, o mesmo tribunal anulou este entendimento e devolveu aos 50 estados do país a jurisdição sobre a questão. “Senti que, se eles iriam tirar os direitos que temos sobre os nossos corpos, essa seria minha forma de recuperá-los”, disse Fox em um episódio do podcast Zach Sang Show.
Mas foi após a eleição americana deste ano, que reconduziu o republicano Donald Trump à Casa Branca, que o movimento 4B ganhou força. As buscas no Google sobre o termo explodiram entre a véspera e os dias seguintes ao pleito americano, em 5 de novembro. Milhares de mulheres compartilharam suas experiências de abstinência em vídeos no TikTok. Muitas inclusive rasparam o cabelo – uma marca entre as adeptas ao movimento.
A sul-coreana Mingyeong Lee, que faz parte do movimento desde sua fundação, se diz feliz em ver o perfil da 4B crescer tão rapidamente. “Eu estava esperando que isso acontecesse. Demorou oito anos para chegar até vocês”, disse ela à DW.
Mingyeong vê semelhanças entre as lutas pelos direitos das mulheres nos EUA e na Coreia do Sul. “Há oito anos, descobrimos que nossos amigos, pais ou outros homens próximos a nós não compartilhavam nossa perspectiva sobre questões de gênero”, explica ela.
Ela se refere a um feminicídio que aconteceu em Seul, capital da Coreia do Sul, no qual um homem matou uma mulher no banheiro de um bar e alegou que o fez porque ela o havia ignorado a vida inteira.
O assassinato deu força a uma nova onda de movimentos feministas na Coreia do Sul, liderada por mulheres jovens que denunciaram o problema da misoginia no país. Em 2019, nove entre dez vítimas de crimes violentos no país eram mulheres, de acordo com o procuradoria-geral da Coreia do Sul. Um relatório publicado pela ONU nesta semanaaponta que uma mulher ou menina é assassinada a cada 10 minutos no mundo por seu parceiro ou por um membro da família.
Mulheres atacadas por “parecerem feministas”
O movimento viu mulheres construindo solidariedade por meio da resistência, mas também enfrentou uma reação negativa. “As mulheres que usam cabelo curto são rotuladas como doentes, assediadas e até mesmo agredidas fisicamente, porque se parecem com feministas”, diz Seohee Lee, estudante sul-coreana e ativista do 4B.
Ainda assim, Seohee diz que o movimento não se trata de vingança, mas de criar uma comunidade segura para as mulheres. “As coreanas estão resistindo às ameaças do patriarcado de uma forma silenciosa, mas altamente eficaz.”
Mingyeong Lee, por exemplo, tem 32 anos e não quer ter filhos. Ela nasceu em uma época em que o aborto de fetos do sexo feminino ainda era popular na Coreia do Sul, apesar de o país ter promulgado uma lei em 1988 que proibia os médicos de revelar o sexo da criança.
Ainda assim, a Coreia do Sul tem hoje a menor taxa de natalidade do mundo – um índice que seu presidente, Yoon Suk-Yeol, atribui ao feminismo. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a nação está entre os países com maior disparidade salarial entre homens e mulheres. “Este é um lugar cruel para as mulheres”, explica Mingyeong. “Se dermos à luz meninas, elas não estarão seguras nem felizes.”
Políticas de Trump reforçam movimento
Ivans vive no estado de Seattle, Washington, a 8 mil quilômetros de distância de Mingyeong e também não quer ter filhos.
Assim como Mingyeong e Seohee, Ivans percebeu que pouquíssimos homens em sua vida compartilhavam de sua consideração pelos direitos das mulheres. Seu pai era um dos homens que não liga para essa questão. Apesar de quase ter perdido sua esposa devido a uma gravidez de alto risco, ele votou em Donald Trump.
Durante seu primeiro mandato, Trump indicou três dos juízes da Suprema Corte que votaram para derrubar o direito ao aborto nos EUA. O republicano chamou a decisão de “uma coisa linda de se ver” e opositores apostam que osegundo mandato do republicano pode ser ainda pior para o direito das mulheres.
A ideia de engravidar e não ter acesso a um aborto seguro aterroriza Ivans. “Meu pai diz que se preocupa com os direitos das mulheres. Mas, na hora do voto, ele diz que há coisas mais importantes”, conta. “Então, a essa altura, quando influenciadores estão gritando slogans como ‘seu corpo, minhas regras’ por toda a internet, o próximo passo lógico é algo como o movimento 4B”, acrescenta.
O slogan citado por Ivans foi propagado pelo influenciador de ultradireita e supremacista branco Nick Fuentes logo após a vitória de Trump. Ele provoca indignação, mas é mais do que apenas palavras.
De acordo com a Pesquisa Nacional sobre Parceiros Íntimos e Violência Sexual dos EUA, duas em cada dez mulheres do país são estupradas em algum momento de suas vidas, e quase metade sofre violência sexual além do estupro.
Tendo seus direitos e corpos atacados, mulheres como Ivans estão se inspirando nas feministas sul-coreanas e em seus métodos de resistência. “O sexo é uma linguagem que os homens entendem”, explica. “O movimento 4B diz: ‘Ei, eu vou tirar isso até que você esteja ouvindo’. Não como uma punição, mas como uma forma de chamar a atenção.”
Linguagem universal
A ativista Seohee Lee está feliz que as americanas estejam adotando o movimento 4B. Ela se pergunta se elas estão vivenciando o que ela sentiu quando a Coreia do Sul elegeu Yoon Suk Yeol, cuja campanha prometia abolir o Ministério da Igualdade de Gênero e Família.
Seohee não se surpreende com o fato de as mulheres nos EUA também enfrentarem resistência por usarem a abstinência para defender o direito ao aborto. “Afinal, sou uma feminista que os homens odeiam e detestam”, diz ela.