Nas últimas décadas, o movimento sindical brasileiro obteve conquistas memoráveis. Sua galeria de troféus inclui a eleição de Lula, o seu grande líder, para a Presidência da República, a criação do PT, um partido com raízes operárias que chegou ao poder pela via democrática, e a realização de greves históricas, que mudaram os rumos políticos do País, como a dos metalúrgicos do ABC, em São Paulo, nos anos 1970, durante o regime militar.

Nos governos petistas, os sindicatos e seus dirigentes se tornaram tão fortes e influentes que a expressão “República sindicalista” voltou a ser usada por muitos analistas e adversários políticos. Embora a difusão e até a criação do termo sejam atribuídas a Carlos Lacerda, o líder da extinta UDN, em referência ao governo João Goulart (1961-1964), foi no período em que o PT ocupou o Palácio do Planalto, provavelmente, que ele encontrou a sua mais completa tradução.

Os anos dourados do movimento sindical, porém, parecem ter ficado para trás – e não apenas pelo desgaste de Lula e do PT, com a corrupção que prosperou nos governos do partido, e pelos pecados cometidos na economia, que jogaram o País na maior recessão de que se tem notícia em todos os tempos.

‘Futuro incerto’

Com o avanço da tecnologia na produção e no trabalho, acelerado pela pandemia, as condições que favoreceram o protagonismo dos sindicatos desde a redemocratização estão desaparecendo rapidamente, e até agora eles não encontraram uma saída para tentar manter a relevância e até mesmo garantir a sua sobrevivência.

“Nunca o futuro dos sindicatos foi tão incerto”, diz Leôncio Martins Rodrigues, autor do livro Destino do sindicalismo (Ed. Edusp, 336 págs.), uma referência na área. Lançado em 1999, o livro já apontava, com base em experiências e dados dos países desenvolvidos, o declínio dos sindicatos, em decorrência da globalização e da tecnologia, e sugeria que o fenômeno poderia ser duradouro e se alastrar pelo mundo.

Embora só agora, com a pandemia, as mudanças tenham se tornado mais visíveis no Brasil, elas já vinham ocorrendo lá fora desde o fim do século 20. Segundo Rodrigues, o processo se manifestou de forma tardia no País porque os sindicatos se beneficiaram de “circunstâncias excepcionais”, que permitiram a ascensão de Lula como líder sindical e a sua chegada ao poder, com o PT. Mas, em sua avaliação, essa conjunção favorável dificilmente vai se repetir. “Não há sinal de que isso vai voltar”, afirma.

Os desafios que os sindicatos têm pela frente são grandiosos. A revolução tecnológica, turbinada pela robotização crescente da indústria, pelo desenvolvimento da inteligência artificial, pela digitalização do trabalho nos escritórios e pela popularização do e-commerce, deverá afetar o emprego, as atividades profissionais, a renda da população e até a educação, com forte impacto na atuação dos sindicatos.

Nos próximos anos e décadas, o ambiente em que os sindicatos operam será muito menos favorável do que no passado recente. Com a chamada 4.ª Revolução Industrial, os empregos na indústria, que já vêm em queda livre há algum tempo, vão se tornar uma fração do que eram. Isso deverá minar a capacidade de mobilização do movimento, que se beneficiava da presença de um grande número de trabalhadores no chão de fábrica para fazer a sua pregação e exercitar a musculatura.

Home office

Nas atividades administrativas e de atendimento ao público, como os call centers e o comércio, atingidas em cheio pela aceleração da automação na pandemia, o cenário não é muito diferente. A decisão de muitas empresas de manter parte dos empregados em home office depois que a covid-19 se for vai complicar ainda mais o quadro. Uma parcela dessa mão de obra será absorvida pelo setor de serviços, mas isso também não aliviará muito a situação. No setor de serviços, tradicionalmente, a mobilização já é bem mais complicada, devido à maior dispersão de trabalhadores.

“Quando a mão de obra se desloca de uma base industrial mais forte para o setor de serviços, que é mais atomizado, dominado por micros, pequenas e médias empresas, fica mais difícil organizar os trabalhadores”, diz o sociólogo e consultor Clemente Ganz Lúcio, ex-diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e hoje envolvido numa força-tarefa formada pelas centrais, para tentar formular uma nova estratégia de atuação para o movimento sindical.

Aplicativos

Ao mesmo tempo, novas formas de contratação estão ganhando espaço no mercado, como alternativa ao sistema de trabalho em tempo integral, no qual os sindicatos se movimentam com maior desenvoltura.

Favorecidas pela reforma trabalhista de 2017, que é alvo da ira permanente dos sindicalistas, apesar de agradarem as empresas e muitos profissionais, elas incluem o trabalho parcial, pelo qual o empregado trabalha até 25 horas semanais, e o intermitente, em que o funcionário é convocado para trabalhar conforme a necessidade das empresas e ganha por hora trabalhada.

Com o corte de vagas formais, regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), muitos empregados vão se tornar empreendedores. Só no ano passado, 1,9 milhão de trabalhadores se registrou como MEI (microempreendedor individual), de acordo com o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), um recorde desde o surgimento da categoria, em 2009. O número de prestadores de serviço para os aplicativos de entrega e transporte, como Uber, iFood e Rappi, que não mantêm vínculo empregatício, também se multiplicou. “O mundo moderno não é de emprego, é de trabalho”, afirma o advogado e consultor Magnus Apostólico, ex-diretor de Relações Trabalhistas da Febraban, a entidade que reúne os bancos do País.

Além de tudo isso, há uma mudança significativa de mentalidade ocorrendo na sociedade, que se revela, em toda a sua extensão, no caso dos motoristas e entregadores de aplicativos. Embora os sindicatos tentem aliciá-los, sob o argumento de que a relação deles com as empresas deveria ser regida pela CLT, a maior parte da turma não quer nem ouvir falar do assunto.

“Hoje, os próprios trabalhadores falam que querem ser donos da própria vida”, diz o consultor. “Não existe coisa pior para os sindicatos do que achar que têm influência e a base que eles acreditam representar dizer ‘olha, eu nem sei que vocês existem’.”

Para o sociólogo José Pastore, presidente do Conselho de Emprego e Relações de Trabalho da Federação do Comércio de São Paulo, isso não significa que os sindicatos vão desaparecer. Nem que o trabalho formal vai acabar. Em sua visão, várias atividades exigem formalização de vínculo com os empregados, por questões estratégicas e de confidencialidade.

Ainda assim, para superar as mudanças trazidas pela revolução digital, os sindicatos terão de mostrar que são capazes de se reinventar e se adaptar aos novos tempos.

Queda de sócios e de receitas

A revolução digital pega os sindicatos do País num momento de fragilidade, o que pode complicar ainda mais a adaptação aos novos tempos, que já não será fácil.

De um lado, o número de trabalhadores sindicalizados despencou, colocando em xeque a representatividade das entidades. De outro, as finanças dos sindicatos encolheram de forma expressiva, com o fim do imposto sindical, em 2017. “O sindicato deixou de ser um ator político e econômico importante”, diz o sociólogo Leôncio Martins Rodrigues.

Para completar o quadro, com o desemprego recorde, ficou bem mais difícil propor pautas ambiciosas de reivindicações e realizar grandes mobilizações – um problema que se agravou com as restrições adotadas na pandemia. As greves também minguaram, bem como os acordos coletivos que garantem ao menos o reajuste dos salários pela inflação.

Em parte, esse enfraquecimento pode ser atribuído ao “afastamento das bases” e à acomodação dos dirigentes. “Às vezes, o movimento sindical fica mais na agenda burocrática e perde a aderência aos trabalhadores”, diz o sociólogo e consultor Clemente Ganz Lúcio. “Tinha presidente de sindicato que convocava eleição e colocava o edital na porta do banheiro dele”, afirma Ricardo Pattah, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT), uma das principais centrais sindicais. “Nem os diretores do sindicato ficavam sabendo que haveria eleição.”

Muitos sindicalistas e boa parte da esquerda creditam as dificuldades ao “governo golpista” do ex-presidente Michel Temer, por ter patrocinado a reforma trabalhista, que flexibilizou as relações de trabalho e acabou com o imposto sindical, e à ascensão do “fascismo” no País, com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, que “não valoriza as questões sociais”.

“O presidente sempre falou que quer acabar com o movimento sindical”, diz Lúcio. “O fascismo crescente está acabando com o sindicalismo e escravizando os trabalhadores”, afirmou Pattah, considerado uma das vozes mais moderadas do movimento, em encontro com “companheiros” em Pernambuco, em 2020.

A revolução digital, porém, está se impondo no mundo todo, independentemente da ideologia dos governantes, e pouco se pode – ou se deve – fazer contra ela, sem perder o bonde da história.

Resistência à automação

Na pregação dos sindicalistas, duas palavras têm presença garantida nos últimos tempos: “uberização” e “precarização”. Elas simbolizam com perfeição a postura defensiva predominante no movimento sindical contra as novas formas de contratação de profissionais e o avanço da tecnologia na produção e no trabalho.

Como os ludistas nos primórdios da Revolução Industrial, na Inglaterra, no século 19, que promoviam a quebra das máquinas nas indústrias por acreditar que iriam acabar com os empregos, os sindicalistas agora resistem à revolução digital e querem ditar o seu ritmo, para tentar evitar que os robôs e a inteligência artificial ganhem espaço.

“O que o movimento sindical talvez tenha dificuldade de entender, pela velocidade com que as coisas estão acontecendo, é que a automação ou a digitalização não é uma decisão da empresa, mas de mercado. Se ela não fizer isso e o seu concorrente fizer, vai morrer e provocar mais desemprego”, afirma o advogado e consultor Magnus Apostólico.

Aparentemente, o mundo ideal, na visão de muitos dirigentes sindicais, seria aquele em que tudo continuaria como está, sem que qualquer fator levasse os profissionais a sair da “zona de conforto”. A percepção geral é de que a lei que proibiu as bombas de autosserviço nos postos de gasolina, para garantir o emprego dos frentistas, aprovada em 1999, representa “uma conquista dos trabalhadores” e não um freio à produtividade e à modernização do País.

“No Brasil, essas mudanças modernizadoras são feitas com enorme dificuldade”, diz Almir Pazzianotto Pinto, ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e ex-ministro do Trabalho. Segundo ele, a própria Constituição inclui entre os direitos dos trabalhadores a proteção contra as transformações trazidas pela tecnologia. “Como é possível impedir a automação em nome da proteção a uma mão de obra não qualificada?”, questiona. “A mão de obra qualificada não tem receio da automação e da digitalização.”

Jetsons

Para tentar sobreviver neste cenário e recuperar a relevância perdida nos últimos anos, os sindicatos terão, provavelmente, de deixar de lado postura defensiva e procurar se adaptar aos novos tempos. A luta contra a tecnologia jamais foi bem-sucedida, exceto por curtos períodos, que pouco ou nada representam no curso da história.

Apesar da resistência dos ludistas no início da industrialização, a Inglaterra logo se tornou uma potência econômica, com a multiplicação da produção, o corte de custos e a oferta de bens acessíveis a uma massa de consumidores inimaginável até então. Como se constatou depois, a industrialização levou à criação de milhões de empregos, ao aumento generalizado da renda e a uma prosperidade como nunca se tinha visto.

Se, por um lado, a tecnologia elimina algumas ocupações, por outro cria novas demandas e permite o aumento da produtividade, que é a força motriz do desenvolvimento. A questão é que sempre haverá uma defasagem de tempo entre uma coisa e outra, como na Inglaterra de dois séculos atrás.

“O importante é admitir que a tecnologia está transformando os empregos atuais”, afirma o sociólogo José Pastore. “As pessoas só vão conseguir trabalhar se acompanharem essa transformação.” De acordo com ele, um estudo do Fórum Econômico Mundial apontou que, em dez anos, o mundo terá de requalificar cerca de um bilhão de trabalhadores atingidos pelo avanço da tecnologia.

“Sou da geração dos Jetsons. Adorava ver os Jetsons. Tudo isso está chegando”, diz Ricardo Pattah, presidente da União Geral de Trabalhadores (UGT) e um dos sindicalistas que mais têm se movimentado para implementar ações de capacitação. “Só que, se não nos prepararmos para isso, vamos ter tantos miseráveis que o mundo vai ficar caótico.”

No Brasil, porém, a capacitação profissional sempre foi considerada uma questão menor pelos sindicatos e eles nunca entraram para valer na área. “Os sindicatos deixaram os trabalhadores sem as competências e habilidades necessárias para concorrer em um mundo cada vez mais ágil e online”, diz o economista Gabriel Pinto, autor do livro Passaporte para o Futuro (Edições Cândido, 2020).

Em paralelo a esses esforços isolados, o movimento sindical se movimenta para mudar de forma radical a organização das entidades. A ideia é aproveitar a reforma sindical parada no Congresso para acabar com a atual classificação de sindicatos e criar grandes organizações setoriais, com base nacional. No caso da indústria, seria criado um sindicato com todos os trabalhadores que atuam no setor – assalariados, terceirizados, autônomos e prestadores de serviço, de todos os ramos de atividade. “A classificação atual fragmenta a representação sindical”, diz o sociólogo Clemente Ganz Lúcio.

Por ora, os sindicatos estão procurando usar a tecnologia em seu favor, desenvolvendo aplicativos e ferramentas para permitir a associação de trabalhadores pela internet. Com a pandemia, as assembleias virtuais se tornaram um instrumento precioso para os dirigentes tentarem se aproximar mais de suas bases. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.