16/01/2025 - 9:23
Ela não só atuou por reconhecimento da morte do marido, Rubens Paiva. Advogada defendeu demarcação de terras e publicou livro sobre causa. Seus argumentos foram um dos pilares da questão indígena na Constituição de 1988.No terceiro capítulo da última parte do livro Ainda estou aqui, do escritor Marcelo Rubens Paiva, e em alguns minutos das cenas finais do aclamado filme homônimo, a advogada Eunice Paiva (1929-2018) é retratada como uma mulher cujo papel para a história recente brasileira foi maior do que a de simplesmente a viúva que lutou para o reconhecimento da morte, cometida por agentes da ditadura, do seu marido, o político e engenheiro Rubens Paiva (1929-1971).
Graduada em direito aos 47 anos – depois da perda do marido –, Eunice se tornou uma das pioneiras da luta pelos direitos dos povos originários. “Aos poucos, ela se deu ao luxo de atuar numa área que não dava dinheiro, mas pela qual se apaixonou inexplicavelmente: o direito indígena”, escreve Marcelo, no seu livro. “Passou a atender e a representar nações indígenas que tinham suas terras demarcadas não respeitadas.”
“Eunice Paiva foi uma das figuras mais importantes na luta pelos direitos dos povos indígenas no Brasil, especialmente durante o período da redemocratização do país”, avalia o historiador Carlos Trubiliano, professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e assistente técnico na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
O ambientalista, filósofo e escritor Ailton Krenak, que autou com Eunice em algumas dessas questões e recentemente se tornou o primeiro indígena a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, avalia que ela “animou o debate sobre a falta de uma política pública na promoção do reconhecimento e proteção das terras indígenas”.
Debates
Um ponto simbólico dessa luta foi o artigo publicado em 1983 no jornal Folha de S. Paulo, intitulado Defendam os pataxós e escrito em parceria com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, hoje aposentada na Universidade de São Paulo (USP) e professora na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. “Ambas trabalhavam na Comissão Pró-Índio de São Paulo, ONG fundada em 1978. O artigo foi um marco na luta indígena brasileira e serviu de modelo para outros povos indígenas, inclusive africanos, americanos e esquimós”, contextualiza Marcelo, lembrando que os povos nativos eram “tratados como um estorvo na ditadura por fazendeiros aliados do regime”.
Em 1985 Eunice publicou, com a antropóloga Carmen Junqueira, hoje professora emérita na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, o livro O Estado contra o índio. Na obra elas traçam um panorama da legislação indigenista brasileira e apresentam as violações dos direitos humanos cometidas contra esses cidadãos.
“[No livro, ela] propunha perspectivas de soluções para a causa indígena, que se mostram relevantes ainda na atualidade”, avalia a psicóloga Mariana Festucci Grecco, professora universitária, pesquisadora na USP e autora de artigo acadêmico sobre a trajetória de Eunice. “[Ela defendia a] criação de entidades de apoio à causa indígena e o fortalecimento da organização indígena, com a promoção da autonomia cultura e autodeterminação das nações e comunidades com colaboração recíproca, a inviolabilidade e a demarcação de suas terras, entre outros direitos.”
Grecco comenta que a obra apresenta “como os povos indígenas sofreram a expropriação sistemática de suas terras, bem como o extermínio, ao longo de quatro séculos de história”. “E como a legislação brasileira ainda era incipiente em proteger os direitos dos nossos povos originários”, ressalta, lembrando que a primeira legislação específica a tratar do assunto foi o código civil instituído logo após a proclamação da república, situando “os direitos dos indígenas de maneira restrita e tutelada”.
“Eunice e Carmen sinalizavam como ela era limitada em situar o indígena como pessoa e titular de direitos, já que o contextualizava como ‘relativamente’ capaz para o exercício de ‘certos’ atos da vida civil, ainda sob o regime de tutela”, detalha a professora.
Constituição de 1988
Especialmente ao longo dos anos 1980, Eunice foi voz ativa na questão, influenciando os debates que culminariam na maneira como os indígenas passaram a ser oficialmente tratados pelo Estado a partir da Constituição de 1988. Marcelo diz que para sua mãe, “a luta era a mesma” do que a encarnada na questão dos desaparecidos políticos, torturados e mortos pela ditadura. “Se não conseguiu salvar o marido e tantos outros, tentaria salvar os índios, numa ditadura enfraquecida, com uma sociedade civil mais organizada e a imprensa livre”, pontua ele.
Trubiliano ressalta que foi fundamental a contribuição de Eunice para a formulação do artigo 231 da Constituição, “um marco jurídico inédito no país, fundamental na garantia e na proteção dos direitos das populações indígenas, assegurando aos povos originários o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além do direito às terras que tradicionalmente ocupavam”.
Eunice ativista
“Depois de […] se identificar com a dor, minha mãe se engajou com tudo: no Dia do Índio de 1984, participou de um debate da TV Cultura [a respeito do tema, com a participação de nomes como o de Krenak]”, diz o escritor. “Passou a ser apresentada como assessora jurídica da Comissão Pró-Índio. Participou de vários debates […]. Exigia a demarcação das terras indígenas. Denunciava que o governo não parecia estar disposto a cumprir o que exigia a lei. Governo militar, ainda. O que restava dele.”
Marcelo conta que, nessa época, líderes indígenas frequentavam a casa da mãe, em São Paulo.
Em julho de 1984, Eunice representou o Brasil no Congresso Mundial das Populações Nativas em Estrasburgo, na França. “Ela passou a assessorar o Banco Mundial. Ficou amiga de antropólogos, especialistas em meio ambiente, em energia”, conta o filho. “Passou a falar não mais como a viúva de Rubens Paiva, representante de familiares de desaparecidos, mas como autoridade em direito indígena representante do Banco Mundial.”
Em 1987, em parceria com outros ativistas, Eunice fundou o Instituto de Antropologia e Meio Ambiente, ONG que funcionou até 2001 na defesa e autonomia dos povos indígenas. Também foi ativa participante de outras organizações civis, como a Mata Virgem e a Fundação Pró-Índio.
Em uma disputa que se arrastou por anos, ela atuou para que a companhia Vale do Rio Doce indenizasse as comunidades nativas em cujas terras foram construídas uma ferrovia, a Estrada de Ferro Carajás, entre Pará e Maranhão. Ela advogou em vários outros processos de contendas fundiárias — como ressalta o historiador Tubiliano, “muitas vezes de forma voluntária, sempre em defesa da causa indígena”.
Advogada pela causa indígena
“Sua atuação enquanto advogada e consultora em favor da causa indígena permitiu a correta contextualização dos indígenas enquanto pessoa de direito, fundamental para a elaboração da Constituição cidadã [de 1988], bem como o reconhecimento da necessidade da correta demarcação das terras, muito embora durante o governo de Jair Bolsonaro [de 2019 a 2022] tenha sido praticada a necropolítica, ainda sem punição, contra nossos povos originários”, afirma Grecco.
Na opinião do pedagogo Alberto Terena, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros, um aspecto importante do ativismo de Eunice foi associar “a violência ocorrida durante a ditadura militar” à questão da defesa dos povos originários. Um exemplo visível foi o fato de que a política do regime incluiu a construção de grandes rodovias rasgando territórios próximos aos ocupados pelos indígenas. “Foi um dos motivos maiores do massacre de nossos povos”, analisa.
“Como advogada, creio que ela foi uma das mais fortes bandeiras de nossa luta. Ela mostrou que o processo contra os indígenas foi violento, brutal”, ressalta Terena.
“Somos diversos em todas as frentes de lutas civis contra a tendência autoritária, e Eunice Paiva sobressaiu-se por sua persistência e coragem, discreta em sua maneira de enfrentar o fascismo sem rosto até o fim”, destaca Krenak.
O ambientalista comenta que “esse quadro de violência” contra os povos originários enfrentado por Eunice persiste até hoje, “agravado por decisões do Congresso” buscando a mudança no que prevê a Constituição e tentando “impor o Marco Temporal, dispositivo que proíbe demarcar terras de ocupação após a data da regulamentação constitucional”.