21/12/2024 - 15:00
A advogada Letícia Cardoso, moradora da cidade de São Paulo, estava fora de casa em uma tarde de novembro de 2024 quando recebeu uma ligação de sua irmã: havia chegado uma carta para ela com remetente do Vaticano. “Eu falei, o que?”, lembra Cardoso. “Eu não vou ao Vaticano desde 2015 e eu sou judia. Como assim?”
A carta na verdade era uma multa de trânsito tomada mais de um ano antes na cidade espanhola de Granada, por onde ela viajou em um carro alugado durante suas férias em 2023. A ocorrência apontada era de tráfego indevido na faixa de ônibus. O valor é de 40 euros caso seja paga sem recurso, ou 80 euros após tentativas de recorrer. Confusa, Cardoso chegou a temer ser vítima de um golpe e até cogitou não pagar.
Ela não é a única surpreendida por receber uma carta do Vaticano sem ter visitas recentes ao país. Em 2023, o jornal espanhol Ultima Hora chegou a noticiar um turista alemão que entrou na justiça contra a prefeitura de Palma por se sentir enganado pela multa com o selo do Vaticano. Outros relados de pessoas surpresas ou indignadas podem ser encontrados em redes sociais como X e Reddit. Veja abaixo.
A responsável pela emissão é a Nivi Spa, empresa do grupo Nivi, holding de origem italiana que atua em cobrança de dívidas e coleta de informações comerciais. A companhia informa no seu site atender a 650 autoridades e administrações públicas, para as quais se encarrega de cobranças de pedágios não pagos, multas e impostos. Além da sede em Florença, na Itália, eles também possuem hoje endereço na Espanha.
Por que a multa da Espanha vem do Vaticano?
Leticia Cardoso acredita que a escolha do Vaticano para enviar as multas busca instigar o infrator a receber a carta. “Acho que querem botar medo”, diz.
No entanto, o site IstoÉ Dinheiro entrou em contato com a Nivi Spa para saber por que a empresa usa os serviços postais do Vaticano para enviar uma multa referente a uma infração ocorrida Espanha. A empresa respondeu que a escolha ocorre por uma questão econômica.
“A multa é enviada através do Correio do Vaticano pois é mais barata, e como na Espanha não existe mais o monopólio dos correios, a Polícia (ou a empresa que trabalha para a Polícia) pode escolher qualquer serviço de correios para enviar multas para o exterior”, afirma a empresa.
Serviço Postal e Igreja
A Igreja Católica está ligada ao próprio surgimento dos serviços de mensagens, com a palavra “postal” tendo raiz nas “cartas dos apóstolos”, segundo informações do próprio Vaticano. Já a criação do padrão de tarifas por selo e peso do item enviado surge na Grã-Bretanha em 1840 e espalha-se aos poucos pelo mundo — o Brasil foi um dos pioneiros, ao emitir o primeiro selo em 1843.
Os Estados Papais — conjunto de estados governados pelo papa, do qual o Vaticano é o único remanescente — institui os padrões de selos em 1952. Hoje, o Poste Vaticane funciona de modo semelhante a outros correios públicos e privados ao redor do mundo: qualquer um pode enviar cartas ou encomendas através dele, mediante pagamento dos selos proporcionais ao peso do item enviado.
Multa no exterior marca pontos na CNH?
As multas tomadas no exterior não chegam à Carteira Nacional de Habilitação (CNH) na maior parte dos casos. As exceções são as infrações graves, que no país onde a multa foi emitida sejam passíveis de suspensão da permissão para dirigir. Nestes casos, as autoridades estrangeiras podem requerer a suspensão da CNH no Brasil.
“A maioria dos países fazem isso diretamente a Senatran, que despacha para o Detran onde o condutor tem sua habilitação”, explica o presidente da Associação Nacional dos Detrans (AND) e diretor presidente do Detran-ES, Givaldo Vieira.
Vieira recomenda cuidado com possíveis regras diferentes de trânsito no país estrangeiro. Como exemplo, cita locais dos Estados Unidos onde bebida alcoólica só pode ser transportada no porta-malas. “A legislação do trânsito de cada país e disciplina são diferentes”, diz.
O que acontece se não pagar a multa?
As consequências de multas tomadas no exterior são regidas por acordos internacionais entre os países. No caso da Espanha, a regulamentação abrange toda a União Europeia e prevê o bloqueio de ingresso de estrangeiros em débito com os estados nacionais.
Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Trânsito (IBDTrânsito), Danilo Oliveira esclarece que o impedimento no entanto não é automático e pode até não ocorrer. “Às vezes a autoridade de trânsito local não conhece o procedimento, porque é raro, e acaba que não faz o processamento.”
Deixar de pagar a multa, no entanto, é um risco que Oliveira chama de “roleta russa”, já que a pessoa pode descobrir que teve sua entrada bloqueada apenas ao tentar viajar ao país. Nestes casos, pode ser barrada no serviço de imigração e obrigada a voltar ao Brasil.
Caso o brasileiro resida no estrangeiro, é possível que ele tenha sua permissão internacional para dirigir (PID) recolhida. A medida pode ter pouco impacto, no entanto, já que muitos países são lenientes com a regra internacional de obrigatoriedade da PID. Pode haver ainda consequências para acessar crédito financeiro no local.
Outro risco é o impedimento de alugar novos veículos na mesma empresa, feito de maneira privada pela própria locadora.
Dá pra recorrer da multa de trânsito?
O procedimento para recorrer da multa no exterior pode ser feito Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), porém Oliveira desaconselha a tentativa, pois se trata de um processo “ lento, demorado e caro”.
O alto preço decorre sobretudo da necessidade de fazer traduções juramentadas de documentos. Além disso, será necessário um especialista em direito do trânsito e direito internacional, profissionais raros e que, devido a sua escassez, cobram valores elevados.
Em meio aos riscos, Cardoso decidiu rachar a multa de trânsito com os outros três motoristas que viajam com ela durante as férias da infração. “A gente vai dividir em três e vai ficar mais de boa, mas é um saco porque a multa é muito cara, chegou muito tempo depois, e pelo Vaticano.”