02/02/2001 - 8:00
Um lugar por Deus abandonado e pelo diabo batizado de Capão Redondo. Com essas palavras, o escritor Reginal Ferreira da Silva, o Ferréz, descreve o bairro onde nasceu, há 25 anos. Morada de crianças descalças e esgoto a céu aberto, onde a presença mais marcante do Estado está no trânsito de peruas do IML ? são 188 homicídios para cada 100 mil habitantes ? o bairro da zona sul de São Paulo é também o coração do hip hop, manifestação cultural que nasceu com os negros da periferia, ganhou espaço na mídia ?branca? com o sucesso do grupo de rap Racionais MC e agora se transforma em um grande mercado. Empresas como Sony Music e Nike já começaram a explorar esse filão ? que pode não ter muito valor agregado, mas exibe um volume absurdo. Afinal, a periferia abriga 64% da população do município de São Paulo. Mas além dos investimentos das multinacionais, são os próprios ?manos? que estão transformando a agitação cultural em negócios, montando gravadoras, confecções, revistas e até portais de Internet.
Matheus Oliveira, um rapaz sereno e de fala mansa, muito diferente dos gritos de guerra do polêmico Mano Brown dos Racionais, é quem comanda a Irmandade Wear, a grife dos ?mano?. Instalada em um galpão de 200 metros quadrados no Parque Santo Antônio, um favelão localizado entre o Capão e o Jardim Ângela, a Irmandade Wear confecciona e distribui com exclusividade as marcas dos principais grupos de rap, como Racionais, Detentos do Rap e Ndee Naldinho, além da própria grife. Com uma produção de 300 camisetas diárias ?nos meses bons?, a empresa acumula um faturamento anual de quase R$ 1 milhão ? o que transforma Matheus em um dos grandes empresários da periferia. Apesar das dificuldades de conseguir crédito na praça ? ?qual gerente de banco que vai emprestar para um morador negro do Parque Santo Antônio??, indaga ?, a Irmandade deve fechar o ano com um crescimento de 150% em seu faturamento. Para isso, a oferta de produtos que hoje é basicamente de bonés e camisetas, irá se expandir para todo o guarda-roupa, de cintos e meias a agasalhos e bermudas. Tudo tamanho GG, no estilo hip hop originário dos bairros do Bronx e Queens, de Nova York.
Hoje a Irmandade tem 16 funcionários fixos ? todos conhecidos de infância de Oliveira ?, e emprega outros 36 de forma terceirizada. As roupas estão à venda em 35 pontos em São Paulo e também no Distrito Federal e em outros cinco Estados: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro. O plano de expansão inclui a abertura de duas lojas próprias em São Paulo. Uma na rua 24 de Maio, no Centro, e outra em um shopping ainda não definido. ?Estamos crescendo aos poucos, não queremos dever para ninguém?, diz Oliveira. ?Tudo o que a gente ganha é para pagar despesas e investir do negócio.?
O grande sucesso da grife vem da ligação com os Racionais, um dos maiores sucessos fonográficos dos últimos anos, com mais de 1 milhão de cópias vendidas do CD Sobrevivendo no Inferno. Eles se conhecem desde a década de 80, quando Oliveira organizava bailes e festas para inteirar o orçamento. Oliveira e os Racionais também estão unidos na organização de shows. O primeiro deles, o Millenium Rap, aconteceu no dia 13 de janeiro e atraiu mais de 47 mil ?manos? e ?minas? para o Anhembi. Preço do ingresso: R$ 15,00. Reunindo uma série de grupos nacionais e estrangeiros, o evento já entrou para o calendário musical da cidade e deverá se tornar anual. Oliveira também está em busca de R$ 600 mil de patrocínio para colocar em atividade um grande portal hip hop. ?O portal vai se pagar com a venda de produtos?, afirma Oliveira. ?Dentro de dois anos, o computador vai ser igual a tevê em cores.?
É praticamente impossível quantificar quanto movimenta o mundo mano. ?Esse mercado não tem valor?, é a resposta de Oliveira. ?Sempre fomos discriminados.? Ainda que o dono da Irmandade seja ultracatólico ? ensina catequese na igreja do bairro e prega a paz e a justiça social ?, a grife não escapa do estigma da periferia. Ao circular pelas ruas da cidade logo após a reportagem, um repórter branco trajando a camisa da Irmandade foi abordado e revistado por policiais.
Estigmatizado ou não, tem muita gente investindo nesse mercado. A Editora Scala, com mais de 70 títulos, lançou, de um ano para cá, cinco publicações bimensais voltadas para o mundo rap. Apesar de venderem juntas 270 mil exemplares, sem assinatura, apenas em banca, elas são lidas por um milhão de leitores. ?O mercado está se consolidando?, afirma Marques Rebelo, editor da principal publicação do meio, a RAP Brasil. O público do rap é muito peculiar e aqueles que entram nesse mercado para explorar, sem conhecimento, costumam ter vida curta. Nos últimos anos, três outras editoras lançaram publicações com o tema do rap e a cultura da periferia e não deram certo, tiveram que fechar as portas.
Outro sinal de consolidação do mercado é a pirataria. Tanto os CDs das bandas quanto as roupas são alvo de cópias. Sem condições de contratar advogados para combater a pirataria, Oliveira foi pessoalmente conversar com os donos dos pontos-de-venda que comercializavam roupas falsas e convencê-los de estocar apenas peças genuínas. ?Consegui reduzir em 80% a pirataria?, diz o dono da Irmandade Wear. As confecções americanas também estão desembarcando na periferia. A grife Fubu, por exemplo, chegou com força. Eliminou as cópias falsas e hoje vende camisetas por até R$ 70. Junto com a Fubu, sete outras marcas, como Nike e Vu Wear, marcaram presença durante o Millenium Rap promovendo desfiles e distribuindo roupas antes dos shows.
Os ?manos? podem até vestir a camisa dos gringos. Mas eles gostam mesmo é de ter controle do próprio negócio. Os Racionais têm gravadora própria, a Cosa Nostra, que produz também CDs de outros grupos da periferia. O grupo tem contrato de distribuição com a Sony Music, que desde 1999 possui um selo de rap chamado Black Groove, e possui em seu catálogo cerca de 15 bandas de rap ou hip hop.
Outra característica dos ?manos? é o senso comunitário forte. Apesar do sucesso, os Racionais continuam morando no Capão Redondo, freqüentando os mesmos lugares. ?Temos orgulho do nosso bairro?, diz o escritor Ferréz, autor de Capão Pecado, um romance que conta as agruras de quem mora num lugar esquecido pelo Estado e pelo capital. Apesar da baixa escolaridade da periferia, o livro já vendeu 4 mil cópias. ?Tem um exemplar que circulou em três presídios, foi lido por tudo que é ladrão?, diz Ferréz, com orgulho. Além de escrever, Ferréz acaba de abrir a 1daSul, loja de três metros quadrados, no térreo de sua modesta casa. Resultado de um investimento de R$ 2 mil em ?decoração e divulgação?, o espaço vende roupas, livros, CDs e tudo o que diz respeito ao universo da periferia e funciona como um centro cultural. Cem pessoas passam por ali todos os dias. Agitador cultural e comunitário, leitor de Flaubert, Herman Hesse e Gorki, Ferréz também está lançando uma editora, Literatura Marginal, que terá seu primeiro livro vendido em banca no próximo semestre. Trata-se de uma coletânea de contos de diversos autores marginais, acompanhada de um CD de rap. Junto com os direitos autorais da adaptação para filme de seu livro Capão Pecado, todos esses projetos deverão render, líquidos, R$ 4 mil por mês a Ferréz. Mas tudo que entra já tem destino certo. Está em projeto a criação de uma biblioteca comunitária e também de uma espécie de esquadrão de resgate, a 1daSul Corporação, para socorrer desabrigados. ?Também vamos montar cursos profissionalizantes?, diz ele. ?Cada um faz o que sabe e sabe o que faz. Eu encontrei uma saída pelo caminho da cultura. Mas quem não tem talento artístico se dana.?
Colaborou Danielle Rodrigues Aloe