24/05/2000 - 7:00
O engenheiro carioca Marco Aurélio Espinosa, de 45 anos, sente-se em casa em Montreal. Há três anos, mudou-se para a cidade canadense, juntamente com outros 20 brasileiros, para ser um dos responsáveis pelos sistemas elétricos dos aviões da Bombardier. Espinosa gosta do novo emprego e do novo país, mas não tem como negar o constrangimento. A Bombardier, que com um faturamento de US$ 9,4 bilhões é um dos orgulhos industriais do Canadá, protagoniza um polêmico imbróglio com a Embraer, um dos orgulhos industriais do Brasil e sua principal concorrente no mercado internacional de jatos regionais. De conflito comercial, o assunto virou questão diplomática, deixando Espinosa e os colegas brasileiros divididos entre a carreira e o patriotismo. ?Falamos muito sobre a disputa?, diz ele. ?Sentimos um mal-estar, um embaraço ao vermos a discordância entre o país de onde viemos e aquele em que vivemos agora?, afirma Espinosa, que durante 17 anos pertenceu ao time adversário como funcionário da Embraer. Na sede da Bombardier, em Montreal, a questão é tratada como assunto de Estado, em que todo cuidado é pouco. Até a conversa de DINHEIRO com Espinosa foi acompanhada o tempo todo por um executivo da área de relações públicas da companhia. Detalhe: um canadense que, estrategicamente, fala português. Não por acaso, o engenheiro brasileiro preferiu manter-se neutro. ?Não tenho conhecimento para julgar quem está certo nesse caso?, afirma. ?Mas, você sabe, uma vez Flamengo, sempre Flamengo.?
Na terra do hóquei sobre o gelo, a analogia futebolística exprime bem o clima de decisão de campeonato que se espalha pelo QG e pelas várias fábricas da empresa canadense. Os 56 mil funcionários são também torcedores da companhia. Quase dois terços deles trabalham na divisão aeroespacial, responsável por 56% dos negócios da empresa, o que explica o fato de a disputa com a Embraer já durar mais de 4 anos e ter chegado às últimas instâncias na Organização Mundial do Comércio (OMC). A Bombardier condena o uso de subsídios a exportações que a Embraer recebe do Proex (Programa de Financiamento a Exportações) desde 1996 ? o que a OMC julgou procedente. Segundo a empresa canadense, esse incentivo foi fundamental para a Embraer abocanhar uma suculenta fatia do mercado da jatos regionais. Mais do que isso, segundo cálculos de Yvan Allaire, vice-presidente executivo da empresa, cerca de 5 mil empregos por ano foram perdidos. Já a empresa brasileira diz que o Proex apenas tornou suas taxas de juros mais competitivas, baixando-as para os patamares do mercado internacional. ?Enquanto nós captamos a 15% ao ano, eles captam a 3%?, diz Henrique Rzezinski, vice-presidente de Relações Exteriores da Embraer. ?Eles querem barrar uma empresa brasileira que tenta entrar na indústria de tecnologia?.
?Agora temos de deixar esse assunto para nossos governos resolverem?, afirmou a DINHEIRO o presidente mundial da Bombardier, Robert Brown (leia entrevista). Ele não quer mais o papel de inimigo número 1 da indústria brasileira. De seu escritório, com ampla vista para a bela Montreal, ele anuncia que tem até planos de investimento no Brasil. E dá uma única pista: ?O setor de transportes parece interessante?. Analisando o portfólio da empresa canadense, pode-se apostar que eles estão de olho na expansão dos trechos de trens urbanos e metrô. Ao contrário da Embraer, a Bombardier não vive somente de aviões. De suas plantas em 12 países saíram trens e metrôs que circulam em vários cantos do mundo ou ainda muitos dos jet-skis (que eles chamam de Sea-Doos) utilizados em praias brasileiras. ?Fomos os primeiros a lançar o jet-ski no mercado, em 1968?, diz, orgulhoso, Pierre Pichette, diretor de relações públicas da empresa, enquanto caminha pela linha de produção.
Carrinho de neve. A companhia nasceu em uma pequena garagem de uma cidade de 2.300 habitantes chamada Valcourt, a 150 quilômetros de Montreal. Joseph-Armand Bombardier, um fanático por mecânica, queria construir um veículo motorizado que andasse pela neve, quando tinha apenas 19 anos. No final de 1936 patenteou o primeiro snowmobile, o B7, que vendeu 20 unidades. Em 1942, Joseph criou a empresa L’Auto-Neige Bombardier com mais três sócios: seus dois irmãos e uma secretária. A garagem foi preservada até hoje e faz parte do museu que leva o nome do precoce inventor. Até meados da década de 70, a Bombardier estava concentrada na produção de snowmobiles. Em 1973, por questão de sobrevivência, fez uma primeira grande aposta para diversificar. A crise do petróleo atingiu em cheio o mercado de veículos para neve. Resolveu, então, partir para a produção de transportes de massa e em 1982 assinou um contrato de US$ 1 bilhão para fornecer 825 carros ao metrô de Nova York. A empresa teve um lucro de US$ 100 milhões. O segundo grande passo foi entrar no mercado de aviação, em 1986. ?Foi a fase de maior crescimento?, afirma Yvan Allaire.
Desde o começo dos anos 90, o foco da empresa é ter seu crescimento baseado em novos produtos e novos mercados. Nas pranchetas de seus engenheiros, estão sendo desenvolvidos jatos regionais para 90 passageiros (CRJ 900) e outro com 110 lugares (BRJ-X-110). Novos modelos que devem concorrer com a Embraer. Além dos jatos regionais, a empresa canadense produz inúmeros modelos de jatos executivos a aviões que ajudam a combater incêndios. Uma de suas estrelas é o jatinho Global Express que chega a custar US$ 40 milhões. Xeques árabes, superexecutivos e até Steven Spielberg, segundo uma recente reportagem no La Presse, principal jornal de Montreal, escolheram entre os diversos tipos de estofados, tapeçarias e madeiras para rechear o interior das suas aeronaves. O escritório onde os clientes são atendidos mais parece uma butique de luxo. Muito freqüentada por brasileiros, diga-se. Eles formam o segundo maior mercado de jatinhos do mundo, perdendo apenas para os americanos. Também por isso a Bombardier, apesar da disputa com a Embraer, parece disposta a reconquistar o Brasil.