Amyr Klink sempre anda com um imã no bolso. Assim, o navegador brasileiro, que completa 60 anos este ano, checa se um garfo ou um cano são à prova de ferrugem. Se o imã grudar, ele rejeita a peça. Pura gestão de risco. Esse nível de exigência se expande para todos os seus negócios, da marina – que abriga mais de 200 embarcações em Paraty (RJ) – aos barcos que constrói. Em plena crise econômica, Amyr está entusiasmadíssimo com seu novo negócio, um estaleiro de barcos anfíbios. Ele diz que já vendeu o novo brinquedo, que no Brasil não sai por menos de R$ 1 milhão, para Jorge Paulo Lemann e Beto Sicupira, sócios da Ambev. Foi no dia do acidente aéreo que matou o presidenciável Eduardo Campos, em Santos (SP), que Amyr Klink testava seu barco anfíbio (foto), pela primeira vez, no Guarujá, ali perto. “Eram ondas de cinco metros. Os tripulantes queriam voltar. Eu disse: É agora a hora de testar.” Economista formado pela Universidade de São Paulo (USP), ex-aluno de Fernando Henrique Cardoso e de Delfim Netto, Klink pratica a gestão de pessoas e o gerenciamento de crise em suas viagens. Na semana passada, no Guarujá, ele contou suas experiências numa palestra no CEO’s Family Workshop, evento do Lide, comandado por João Doria Jr. No auditório, dezenas de executivos e empresários, como Sônia Hess, da Dudalina, e Marcos Scaldelai, presidente da Bombril. Depois, Klink falou à DINHEIRO.

DINHEIRO – Como navegar na tempestade, ter frieza para lidar com o perigo?
AMYR KLINK – 
O senso de urgência determina isso. Esse é o problema, por exemplo, de uma empresa em dificuldade. Num caso assim, quando você é empregado e está ganhando seu salário, sabe que está difícil, mas não tem aquela urgência de resolver. O pensamento deve ser: é hoje que nós temos que solucionar. Não é amanhã. É já. Na crise em alto mar, ninguém dorme até resolver.

DINHEIRO – Um gerenciamento de crise em alto mar é assim?
KLINK –
 Não tem outro jeito. Deu um problema? Enquanto não resolver, ninguém dorme. Ninguém come. Fiz minha segunda volta ao mundo com uma equipe de cinco pessoas. Tinha três caras que não entendiam nada de navegação. Em poucos dias, eles incorporaram essa consciência. De repente, o cabo que segura a vela de tempestade está puindo. Temos que fazer algo: ou soltar a vela, ou puxar o cabo, ou passar um outro cabo. Tem que achar uma solução. Se soltar, vai explodir a vela. Se forçar mais, vai estourar o cabo. O que a gente faz? Quem é que sobe lá? Quem passa o cabo? Mas o mar foi uma coisa fácil na minha vida perto dos problemas que eu já tive. Navegar em volta do mundo é brincadeira de criança.

DINHEIRO – Que crises viveu em terra firme?
KLINK – 
Minha família viveu em crise a vida inteira. Minha mãe veio para o Brasil no período pós-guerra. Meu pai veio durante a guerra. Veio do Líbano, que sempre viveu a ocupação francesa e turca, as crises religiosas, políticas, econômicas. Em minha primeira viagem, eu estava num período de crise. Muitos problemas de dinheiro. Na época da viagem a remo para a África, eu não tinha a menor noção da diferença entre uma banheira e um barco. Levei cinco anos para fazer a primeira embarcação. Não sabia por onde começar.

DINHEIRO – Como transfere a sobrevivência no mar para a realidade econômica?
KLINK –
 Com os anos, percebi que, se não fossem as crises, nunca teria tido sucesso. Quando voltei dessa viagem de dois anos, decidi que queria ter um estaleiro experimental e só fazer projetos especiais. E aí começou o inferno econômico. Plano Cruzado, Plano Collor, Plano Bresser, alterações cambiais brutais, Plano Real. Usar melhor a inteligência é uma consequência da crise. Aguça a criatividade. Para fazer um barco na Suécia ou nos Estados Unidos, tudo o que você precisa está na sua porta no dia seguinte. No Brasil, não. É um país complicado. Você tem que desenvolver. Fazer o circuito eletrônico, montar o motor, a geladeira.

DINHEIRO – Você é um exemplo de quem cresceu na crise?
KLINK –
 Se eu tivesse os meios financeiros e intelectuais na época, teria feito como os americanos fazem. Mas nenhum americano fez o que fiz na Antártica. Eles não têm essa competência. Não sabem fazer barco com três anos de autonomia, que possa bater em pedra, ancorar no gelo, encalhar em seco. Não tem isso lá. Eles fazem um padrão bonitinho para o mercado. A gente faz bichos bem esquisitos, uns barcos superparrudos, superleves. E só conseguimos chegar nessas soluções porque estávamos desesperados, sem meios financeiros. Nós não podemos comprar uma solução pronta. Não podemos comprar um motor marítimo? Então vamos “marinizar” um motor agrícola ou um motor de caminhão? Mesmo um motor, quando é “marinizado” pela Mercedes, com 300 cavalos de potência, custa quatro vezes mais. Deve custar R$ 100 mil. Eu pensei: puxa, a gente não constrói em alumínio, vamos fazer isso. E, assim, fomos sacando ideias escandalosamente simples.

DINHEIRO – Como você lida com o medo em alto mar?
KLINK – 
No mar, tenho medo o tempo inteiro. O preparo adianta pouco na hora do perigo. Psicologicamente, não é possível. O medo é saudável. Tenho medo de navegar com alguém que não tem medo. Esses caras muito corajosos morrem no caminho. O medo ajuda a resolver os problemas. Se você está com água dentro do barco e tem uma bomba falhando, tem que mergulhar lá. Tem que beber a água do esgoto, saber se é fezes, se é gasolina, se é diesel ou se é água salgada ou doce. É água de dentro que vazou ou é de fora que está entrando? Primeira coisa: tem que ir lá beber. Depois, tem que achar a falha, achar o circuito elétrico com problema. Esse é um lado muito educativo do mundo náutico. O senso de urgência é obvio.

DINHEIRO – Você está abrindo um estaleiro em plena crise?
KLINK –
 A crise está aí e estou abrindo um estaleiro para construir barcos anfíbios. Já vendi um deles para o Beto Sucupira e o Jorge Paulo Lemann. Estamos abrindo em São Paulo. Se aumentar a demanda até mais de 30 barcos, teremos de ir para Manaus. Hoje, tenho um mínimo de segurança econômica para me atirar numas coisas e, se quebrar, quebrou. Nessas horas, tem muita oportunidade. Fiz um negócio agora, em Santa Catarina. É um projeto de expansão do Museu Nacional do Mar. Descobri imóveis históricos, pérolas maravilhosas que estão à venda por nada. Dupliquei meu investimento em três semanas.

DINHEIRO – Se a Petrobras fosse um barco, no meio de uma tempestade, que senso de urgência deveria prevalecer?
KLINK –
 Neste caso, a solução é: abre o registro, afunda e aciona o seguro. Faz outro. Lá, eles não têm senso de urgência. Uma empresa que detém um monopólio dessa escala não pode ser competente. Já trabalhei com eles, já tive patrocínio deles, é um inferno. Funcionário da Petrobras num canteiro de obras olha para o funcionário terceirizado com um desdém deplorável. Esse tipo de orgulho discriminador, classista, não faz bem para nenhuma empresa. Tem que fechar a Petrobras e abrir quatro empresas novas, divididas por áreas. Transporte, exploração, refino. Há modelos interessantes no mundo. Não precisa só olhar para a Noruega. Tem que estudar. Mas não pode ser um modelo baseado no monopólio puro. Se não, a gente vai para uma Venezuela.

DINHEIRO – Numa analogia com o momento econômico, como se comporta um comandante em um processo de crise numa embarcação?
KLINK –
 Nessas esferas delicadas que envolvem pessoas inocentes, num país que envolve assuntos estratégicos, a última característica que uma pessoa que lidera pode ter é a prepotência. Normalmente, ninguém sabe ouvir. Posso brigar no meu barco o quanto quiser, mas não brigo com ninguém. Posso brigar e jogar o tripulante no mar? Posso, mas ficaria com um tripulante a menos. Num barco, somos obrigados a continuar com a tripulação que temos. Trocar a turma, não dá. Tem que tentar tirar o que cada um tem de melhor. Às vezes, ouço alguém dizer: ‘Nossa, que equipe maravilhosa’. Equipe maravilhosa, o escambau! Muitos que já trabalharam comigo foram incompetentes. Mas eles têm uma boa índole, querem ajudar. Ao descobrir o que cada um tem de melhor e como pode colaborar, a história flui.

DINHEIRO v Se não pode trocar a tripulação no meio da viagem, qual é a saída?
KLINK – 
Tenho uma metodologia que nasceu empiricamente. Gosto de revezar as pessoas e as funções. Quando a gente está com uma equipe grande, até as crianças entram no revezamento. A primeira vez que fomos para a Antártica, com metade da tripulação composta de crianças, todo mundo participava de todas as tarefas. Todo mundo teve que dar um nó lá fora, mesmo que congelasse o dedo. Todo mundo tira o cabelo do ralo do chuveiro, ajuda a desentupir a válvula da privada, a lavar a louça, a cozinhar, a fazer o turno. Nas escalas, há sempre alguém inexperiente ao lado de alguém experiente. O objetivo é multiplicar essa aprendizagem. Nosso amigo médico, Fabio Tosa, é um supernavegador, mas tem mania de dormir no turno dele. Como faço? Ponho mais um atrás dele. Às vezes, botava uma criança: ‘Vai lá que o tio Fábio gosta de puxar uma pestana à noite’.

DINHEIRO – Sabendo disso, você dorme?
KLINK –
 É difícil. Por isso digo, às vezes, que navegar sozinho é mais fácil. Minha primeira volta ao mundo foi uma viagem muito dura. Eu não conheço nem um barco na terra que tenha feito isso. Peguei mais de 40 tempestades e não tive nenhum problema. Na segunda volta ao mundo, estava com cinco caras a bordo. Um tempo lindo. Chegamos a ficar 50 dias sem mexer nas velas. Não pegamos uma só tempestade, mas a viagem foi muito difícil. Foi mais difícil para os caras que tinham um pouco mais de experiência. Um amigo nosso não entendia como funcionavam as catracas do barco. A catraca é aquele negócio que você vira para puxar um cabo de sete, oito toneladas. Quando vai soltar uma vela e tem vento de 150 km/h, o cabo está com umas 30 toneladas. Se encostar na corda do tambor, pode cortar fora o dedo. Já vi esse acidente acontecer. Gestão de pessoas é um desafio. Tenho muito orgulho de ter ido mais de 40 vezes para a Antártica sem ninguém ter perdido um dedo.

DINHEIRO – Dá para errar durante uma tempestade?
KLINK – 
Na tempestade, não dá. Em minha primeira volta ao mundo, todos falavam: “Amyr, nenhum barco, nenhum navio, nenhum quebra-gelo fez até hoje essa viagem”. Para navegar em segurança, não pode navegar à noite. Tem que navegar num período do ano com 24 horas de luz. Foi isso que nenhum dos meus amigos sacou. Eu tinha que andar rápido e ser pontual. Se pegasse duas horas de noite no meio de um campo de gelo, era arriscado. O maior radar do mundo não lê o gelo no meio de ondas grandes. Se você não vê, bate e afunda. A urgência se torna dramática. Por isso temos que resolver.