Uma tragédia. É assim que Roberto Mateus Ordine define a Reforma Tributária que foi aprovada pelo Congresso e que tem seus detalhes desenvolvidos pelo Ministério da Fazenda. “Foi o maior desgosto da minha vida.” Ele fala com propriedade. Advogado, especialista em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo e pela Cornell University (EUA), acompanha o processo de mudanças fiscais desde 1989. E foi juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do estado de São Paulo. À frente da maior e mais representativa associação comercial do País – a Associação Comercial de São Paulo (ACSP) – , Ordine também fala em entrevista à DINHEIRO das ações da entidade, de economia, do humor do consumidor e dos desafios do Brasil.

DINHEIRO – Como o senhor vê o projeto da Reforma Tributária?
ROBERTO MATEUS ORDINE
Para mim, foi o maior desgosto da minha vida. Porque acompanho a Reforma Tributária desde 1989, pelo IBDT [Instituto Brasileiro de Direito Tributário]. Tudo que não podia acontecer, aconteceu nessa Reforma. Aquilo que era simplificação virou transtorno. Imagina para o pequeno empresário ter durante dez anos duas contabilidades: a atual, que vai parar quando a nova regra fiscal ficar completa; e a nova, que já começa a partir do ano que vem. É uma tragédia. Dizem os entendidos que teremos uma boa surpresa com a simplificação do IBS [Imposto sobre Bens e Serviços] e da CBS [Contribuição sobre Bens e Serviços]. Talvez. Eu tenho ressalva. Não reduziu a carga tributária. A alíquota será acima de 25% e pode chegar a 30%. Teve muitas isenções. Vai ser o maior IVA [Imposto sobre Valor Agregado, que vai agregar vários impostos em um único] do mundo. Na Europa é 10%. Em alguns países da América Latina chega a 15%. No Brasil começa com 25%, e não é só isso. Os setores menos articulados, com menor ação lobista, vão pagar mais. É o caso do comércio e serviços. Vai haver uma transferência de carga tributária muito pesada para o comércio e para os serviços. Nas empresas pequenas ligadas ao Simples, ninguém sabe exatamente onde vai parar.

Faltou uma ação mais efetiva da classe comercial para conseguir amenizar a carga na Reforma Tributária?
Talvez tenha faltado, porque foi surpreendente a força com que a indústria entrou nesse jogo. E mais surpreendente ainda foi a maneira como a PEC 45 [que altera o sistema tributário nacional] foi votada. Nós, até o último dia antes da votação, tínhamos a esperança de que não fosse votada. Esse foi um erro. Nós sempre lutamos contra essa Reforma. Queremos a Reforma, mas não dessa forma. Políticos que vieram aqui, inclusive dirigentes da Câmara Federal e senadores, disseram que não iriam votar, pois iriam aguardar. Fomos até mais inocentes do que deveríamos ser.

“A Reforma não reduziu a carga tributária. A alíquota será acima de 25% e pode chegar a 30%. Teve muitas isenções. Vai ser o maior IVA do mundo. Na Europa é 10%. Em alguns países da América Latina chega a 15%”

Vai bagunçar mais a economia?
É preocupante. Vai superonerar o setor de serviços e comércio. Dizem que, com a simplificação, ficará melhor. Eu, na minha idade [82 anos] e desde que eu trabalho, há quase 60 anos, nunca vi nenhuma alíquota diminuir. Só vi aumentar.

Como observa o projeto de renegociação de dívidas Desenrola Brasil e a maior oferta de crédito atual?
Tem um movimento para proibir o uso de cartão de crédito para apostas esportivas on-line. Eu faço a mesma ressalva para a oferta de crédito atual. Não vejo isso com bons olhos, que vai contra o comércio, porque vai vender mais. Explico: uma oferta de crédito com um padrão de ganho do brasileiro não é bom, porque lá na frente pode estourar.

Juros altos e inflação têm atrapalhado o comércio?
O Banco Central está fazendo o possível. Mas é preciso aprofundar a concorrência bancária, que é o caminho para ter juros mais civilizados. Quando a inflação estava em torno de 84% ao mês, a taxa de juros também era estratosférica. Por que os juros ainda são tão altos se a gente já tem uma inflação de um dígito há bastante tempo? Tem um problema de concorrência. Com a Reforma Tributária vai ter desoneração do setor financeiro, mas se não tem concorrência isso não é repassado ao cliente final. Os juros vão ficar maiores por mais algum tempo. E o consumo tem aumentado. E isso também aumenta os preços.

O Índice de Confiança do Consumidor, da FGV, tem registrado instabilidade. A que se deve o mau humor dos consumidores?
Apesar de o panorama geral ser positivo, os itens básicos estão caros, as famílias estão endividadas. Existe um aperto financeiro. A classe média do meu pai não é a minha classe média. Eu fico imaginando uma família, com dois ou três filhos, quanto ele precisar ganhar? O custo de vida é muito difícil. Temos um consumo hoje muito focado em itens essenciais. A inflação dos alimentos está bem alta e isso pega muito mais na pessoa que tem uma renda mais baixa. O índice de confiança mostra preocupação com a situação futura. O consumidor está mais cauteloso.

Como vê o desempenho do varejo?
Com a questão da desaceleração da atividade econômica, dos juros que podem permanecer mais altos durante mais tempo e da queda de confiança do consumidor, provavelmente vai levar a uma desaceleração no crescimento das vendas. Vai crescer, mas provavelmente menos do que ano passado, que fechou em 1,9% o varejo restrito. Vamos fechar mais próximos de 1% neste ano. O varejo é puxado muito por farmácia e supermercado atualmente.

“É preocupante. Vai superonerar o setor de serviços e comércio. Dizem que, com a simplificação, ficará melhor. Eu, na minha idade [82 anos] e desde que eu trabalho há quase 60 anos, nunca vi nenhuma alíquota diminuir. Só vi aumentar”

O que pode melhorar no Brasil?
A gente precisava modernizar a economia brasileira. Nós deveríamos ter uma Reforma Tributária que baixasse a carga, uma Reforma Administrativa para cortar os excessos, racionalizar os gastos públicos. O Estado só deve se meter onde a iniciativa privada não está. E outra coisa é uma Reforma educacional. Melhorar a educação é o caminho. Sou otimista, eu acredito no Brasil. Nunca achei que o Brasil iria quebrar. O potencial é tão grande que uma hora vai conseguir equilibrar. O Brasil vai ser grande pelo que ele tem de potencial e no momento que soubermos usar isso com todo o equilíbrio. Eu não vou ver com certeza, mas espero que os meus netos vejam. Sobre o ponto de vista social, o brasileiro vai ser campeão. O lado político que vai dar mais trabalho, como sempre.

Não seria melhor para o comércio, e para a economia como um todo, menos peso da mão do Estado?
Essa é a grande luta da Associação Comercial e de outras entidades. Aqui é a casa da livre iniciativa, a casa do empreendedor. Nós temos que ter um Estado muito menor do que nós temos.

Qual o foco da Associação Comercial de São Paulo nesse processo?
Antigamente, você andava na Rua Direita e dava trombada nas pessoas. Tinha a mão e contramão de pedestre. Os comerciantes disputavam cada ponto. O comércio era ativo. Hoje você passa ali e vê lojas vazias. A placa mais vista ali é de aluga-se. Então, tem alguma coisa errada. Na minha opinião pessoal, isso começou quando se instalou o calçadão, que impediu as pessoas de acessarem. De lá para cá, veio o metrô e funcionou. Mas não teve uma promoção tão grande como deveria. Agora tem a atuação dos ambulantes na rua. Onde não há organização, surge de tudo. E também, com a pandemia, aumentou o problema das pessoas em situação de rua, que é uma grande tristeza. Há uma certa omissão de todos, não só do governo, da sociedade também. Mas tudo isso tem solução.

Qual a solução?
A gente teve que despertar. Tanto a Prefeitura, o governo do estado e a sociedade. Uma das bandeiras da Associação Comercial de São Paulo é brigar pela revitalização do centro, para ser de fato um shopping a céu aberto. Nosso papel é apoiar e articular. Temos pontos importantes na cidade: Largo São Bento, Largo São Francisco, Rua São Bento, Praça da Sé, Praça Patriarca e a Rua Direita. Temos de estimular a volta de comerciante. Para isso, temos de mostrar para ele que está limpo, seguro e iluminado. Temos 600 mil pessoas cruzando o centro diariamente. São 18 mil funcionários da Prefeitura localizados no centro. Muitas cidades não têm essa população. É um grande potencial de compra. Estamos avançando em parcerias. A iniciativa privada vai investir em totens iluminados, uma grande choperia vai se instalar na Praça Patriarca. Tem atrações como o Edifício Martinelli, Farol Santander, museus, a B3, CCBB-SP… A sede do governo de São Paulo vai vir para o Centro. Ao estimular mais atrações, estimula mais moradias e, consequentemente, o comércio.

Mas tem a questão da segurança que precisa avançar, não?
Melhorou bastante. Hoje tem câmeras de reconhecimento facial no centro. Havia uma burocracia para contratação dessas câmeras. Um edital de licitação complicado, de compra de serviços e produtos, instalação e controle dos softwares e das imagens. Nosso trabalho foi de criar um clima na opinião pública e junto ao Tribunal de Contas a favor das câmeras, para avançar na compra e instalação dos equipamentos. Deu certo. E agora temos esse projeto de shopping a céu aberto, com 14 entradas e saídas. A ideia é ter a mesma sensação de entrar em shopping, com porta automática, câmeras de segurança, totens informativos. Essa ideia está sendo executada, estamos buscando parceiros. Com 1,3 mil agentes de segurança, limpeza, zeladoria…

Quando é feita avaliação do PIB, muito se destacam as análises sobre a indústria e o agronegócio. E pouco se fala no comércio. É um setor subvalorizado na avaliação econômica?
É uma força motriz importante da economia. É um grande impulsionador do PIB. O comércio é o maior empregador do País [19,1 milhões de empregados, segundo a PNAD Contínua do IBGE, de dezembro], ao lado de serviços. Apesar das dificuldades, antes de mais nada, o comerciante é um sonhador, um investidor. Se souber os problemas que você vai passar na área fiscal, na área econômica, em todos os âmbitos, não abre empresa nenhuma. Mas o comerciante não vê nada disso, vê apenas o objetivo de querer vender.

O Impostômetro registrou no dia 5 de abril a marca de R$ 1 trilhão de arrecadação tributária, 21 dias mais cedo do que no ano anterior. Aonde isso vai parar?
Todo ano vai bater recorde. A previsão é de aumento da arrecadação neste ano. Esperamos um crescimento de 2% a 3% em relação ao ano passado. Poderia ser mais alto. Vai aumentar por dois motivos. A própria atividade econômica e a inflação. Nosso sistema tributário está muito baseado em tributação sobre os preços. À medida que o preço aumenta, a arrecadação aumenta…